segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O testemunho do “de-fora”

A diferença como base

Michel Foucault chamou a atenção para a formação discursiva (a senda dos enunciados que nos envolvem). Considera - segundo os seus próprios termos - que o “curso” da história - o núcleo central da narrativa da acção humana - desde o passado até ao presente - é uma espécie de ilusão. Recorde-se que o passado – como inscrição – doação - assinatura do mundo – é sempre uma invenção do presente - e, em consequência, um fardo. O problema é que o homem se vê circunscrito à (inaceitável) violência - ao fechamento cognitivo - às patologias do social. Mas a questão talvez se coloque nestes termos: somos coisas insignificantes e raramente nos pertencemos. A relação com o “de-fora” - a exterioridade selvagem - tende a prevalecer. Não, o homem não é a medida de todas as coisas. Será sempre um ser paradoxal - in-situado – imerso no demoníaco da linguagem - que, em sentido próprio, acaba por reproduzir inevitavelmente as (macro)estruturas estabelecidas.

anómalo

Compreende-se o servo mecanismo das organizações e instituições cada vez que o ser humano incorpora - de forma subjacente - a herança e os automatismos culturais. Elas trazem-o de volta a uma “normalidade” - sinuosa - às atitudes mentais (pré)formatadas. Podemos entrever comportamentos num espectro normativo – de resistência e transferência expresso em sintomas – e, por conseguinte, de incorporação dos códigos da violência institucionalizada. Ocupemo-nos da experiência (inconsciente) do mundo partindo do que nos força ao reajuste, isto é, à produção de sujeitos dóceis. Os ricos tornam-se ostensivamente mais ricos e aqueles que não têm trabalho são cada vez mais excluídos da sociedade oficial. Situamo-nos, assim, em plena problemática da lógica do capital e do mercado, da loucura privativa. A diferença está na massa crescente de seres humanos a soçobrar na depressão e no desespero. Nada é inocente, sentencia Michel Foucalt. Não é ocioso fazer esta constatação. A sociedade disciplinar (que se escuda no poder da norma) acabou por criar dispositivos para vigiar e punir (que nos amesquinham). O homem encontra-se tutelado pelos centros de decisão, as formas e os tipos de controle. Ele é múltiplo e vive no múltiplo. Emerso na ordem contingente – na vulnerabilidade - sente-se livre e preso ao mesmo tempo.

(in)coerência

O ser humano – no seu acúmulo de informação - tende à aparente (in)coerência - remete-se – nas palavras de Henri Laborit - ao aprendizado da recompensa e da punição. Além das explosões de agressividade competitiva e da busca da dominação - no quadro inter individual sócio-histórico - temos a agressividade ou as depressões. Parte-se de três eixos básicos: o saber, o poder, o si (cujas formas do conteúdo variam com a história). Não fica aqui deslocado lembrar que tudo se torna transitório e mortal - anómalo e (dis)contínuo- prevalecendo o comportamento territorial predador. Tudo quanto se disse reporta ao problema da agressividade constitucional do ser humano contra o outro. Nosso pressuposto é o do “riso soberano” - a (auto)contradição. Aqui a multiplicidade não se esconde; acentuemos somente o que nos vincula à linguagem e às construções imaginárias - o campo da política da revolta - o (auto)despredimento e a (auto)invenção? Poética?

“desolação”

Hoje questiona-se a capacidade da razão de produzir conhecimentos verdadeiros (e mesmo, eventualmente, de construir “normas” para vida melhores). Como explicar a nossa actual acomodação à desolação da vida quotidiana? Como explicar hoje que a transgressão seja um meio essencial de dominação? Emersos no jogo social (hiper)festivo – arbitrário - que inclui o apelo humanitário e o caritativo – onde se pode associar a afirmação de um eu tribalizado, globalizado, universalizado, – assiste-se, na verdade, à revelação da comédia da existência e da existência como comédia. Percebe-se que estamos no limiar de um salto no desconhecido que destruirá todas as nossas maneiras de pensar fundadas nas relações entre indivíduos (neotônicas) e espécies (naturais). Todos conhecemos os seus bastidores mais imediatos - comerciantes e banqueiros sem escrúpulos, mágicos suspeitos, médicos e os sábios recorrendo à fabricação de uma “pós-humanidade”. Poderíamos, portanto, afirmar que o que está em causa é o corpo que tem por estrutura um estado de neotenia permanente? Como pôr cobro a este andar às cegas?

dependência

Nesta nova era técnico-científica amplia-se o grau de vulnerabilidade e, não o esqueçamos, de humilhação pessoal. Não hesitamos aqui em referirmo-nos a uma sociedade que parta de facto que a fragilidade e a dependência é algo que todos os indivíduos experimentam em algum momento da sua vida (Alasdair MacIntyre, Animales racionales y dependientes. Porqué los seres humanos necessitamos las virtudes, Barcelona, Paidós, 2001, p. 154). Antes de mais nada, impõe-se uma verificação: a centralidade da vulnerabilidade humana que tem múltiplas facetas. O homem - enquanto animal, ser vivo, corporeidade e anima, - é vulnerável. Enquanto neoteno – termo inventado pelo antomista holandês Louis Bolk - está predisposto à domesticação. Falamos não simplesmente da aceleração dos fenómenos ligados à globalização e das tecnologias da informação que, na maior parte dos casos, transformaram a nossa experiência do espaço e do tempo, mas do declínio das grandes narrativas e do enfraquecimento de agências nômicas tradicionais (a religião e a política).

Paradoxo

Também é necessário fazer referência ao paradoxo (a omnipresença do paradoxo). O mundo do paradoxo é o mundo da síntese impossível. A verdade é que a lógica do paradoxo e a lógica da loucura entrecruzam-se. Pensar o impensável é, essencialmente, pensar o paradoxo e, mais particularmente, o carácter aporético do paradoxo (que pode, com frequência tomar o sentido de um problema insolúvel). Também é preciso não esquecer que a estrutura mesma do real é paradoxal. Mas isso introduz-nos já na relação originária entre o pensamento e o ser que institui-se na ligação ao paradoxo. Ora se a realidade é paradoxal, o pensamento não pode senão constituir-se na paradoxalidade. Constatamos, por conseguinte, que a estrutura paradoxal do real determina da mesma maneira a do pensamento. Julgamos, por isso, que o paradoxo é necessário para determinar a nossa condição humana. Para Pascal, o paradoxo está presente em tudo, do discurso sobre a realidade à realidade ela própria. Seguramente. Entendemos por isso que é preciso assumir – como assinalava Kierkegaard - o paradoxo.

Natalidade

A palavra humanismo adquiriu uma força mágica. Será lícito o simples desejo de definir em que consiste a humanidade do homem? Quando o humanismo funciona como uma matriz, inclusiva e excludente ao mesmo tempo? Compreendemos hoje a necessidade da abertura a maneiras novas de ser sujeito num mundo de diferenças. O homem é, para usarmos a terminologia de Hannah Arendt, um “initium”, um princípio e um principiante. Actuar está – por conseguinte - estreitamente relacionado com um dos aspectos mais gerais da existência humana, a natalidade. Uma coisa porém é certa: vivemos na sombra de uma época histórica em que o genocídio esteve motivado e justificado por uma definição do “verdadeiro” homem. Todos nós estamos sujeitos às consequências da pluralidade humana e portanto das variações de uma natureza humana universal. É necessário, pois, abandonar a ideia de que conhecer o outro é uma condição necessária e suficiente para estabelecer uma relação com ele. Como quer que seja, o ponto decisivo é a diferença, ela corresponde ao facto de que somos distintos e que as diferenças existem exactamente tal como as experimentamos e deparamos. Ora, sucede que a diferença, na opinião de Gert Biesta, nos exige outra atitude face à pluralidade e a alteridade, aquela em que noções como respeito, compaixão e responsabilidade tenham prioridade sobre noções como conhecimento e compreensão (Acerca de la humanidade in Mensajes e-ducativos desde tierra de nadie, p. 123, Barcelona, 2006). Torna-se imperiosa uma linguaguem para a experência (onde se deixa adivinhar a voz da paixão). E, no entanto, a língua da conversação, propriamente dita (como contraposição a essa língua neutra em que articulam os discursos técnico-científicos). Evidentemente a experiência é sempre do singular, não do individual ou do particular mas do singular. “E o singular, segundo Jorge Larrrosa, é precisamente aquilo do que não pode haver ciência, mas sim paixão” (Una lengua para la conversación in Mensajes e-ducativos desde tierra de nadie, p. 53, Barcelona, 2006). A experiência, neste caso, tem a ver com o não-saber, com o limite do que não sabemos. E deste modo, tem a ver com o não-dizer, com o limite do dizer.

política do sintoma

Na verdade, impõe-se-nos falar da psicanálise cujo centro e núcleo é da ordem do “impossível” (no mesmo sentido que os de governar e de educar) É importante lembrar que a psicanálise opera pela palavra. Efectivamente o trabalho de cura analítica consiste em tornar possível o advento de uma palavra no lugar do sintoma. Trata-se aqui de dar-se efectivamente relevo à palavra e ao pensamento. É, portanto, correcto dizer-se que o sintoma fala. Sucede que o sintoma tem a “verdade” como causa, mas é da “mentira” que ele nasce. O autor de “Três ensaios sobre a sexualidade” descobriu - num certo momento - que o segredo da análise se situa na “transferência”. Colocou, indubitavelmente, em evidência, o que nela fazia obstáculo, a saber, a “resistência”. E não ficamos por aqui. Ele concebeu a pulsão de morte como destrutividade autónoma. Ainda melhor: pôs a claro a necessidade de dar relevo à pulsão da morte (enquanto disjuntiva, separadora e geradora de negações) que seria o outro pólo do libido. Isso explica a silhueta lúcifer-amor - que delimita o essencial da problemática levantada pela neurose e revelada pela experiência analítica. Os indivíduos, segundo Siegmund Freud, tornam-se nevróticos por haverem reprimido demasiado os seus desejos e instintos. Ele reconheceu (de facto) o fardo que a existência representa para o ser humano. Todo o ênfase recai na insatisfação humana. O autor de “O futuro de uma ilusão” situou “a infelicidade geral” da sociedade como o limite da terapêutica e da normalidade.

Vontade de destruição

Não é menos evidente a conclusão de que somos seres fundamentalmente psicóticos. Não é psicótico o que é “alienado” ou, para empregar a terminologia de R.D. Laing, “o que tem a personalidade dividida”, mas a personalidade “normal”. A alienação e a cisão são, certamente, as condições básicas para a nossa normalidade repressiva e seus aparatos de instituções anti-humanas. Existe um elo inconsciente que liga os indivíduos aos seus senhores. Esse será um processo de esclarecer, simultaneamente, a figura da dominação e servidão (o senhor e o escravo). O adversário está em nós. Resumindo: vivemos para destruir. Essa “vontade de destruição” (no sentido que lhe dá Lacan) corresponde, não só, como foi dito várias vezes, à aceitação da maldade originária no homem, mas também (precisamente) a maldade que se exerce não em nome do princípio do prazer ou que se coloque a serviço da sexualidade, mas que se afirma independentemente de ambos.

ser-para

Não podemos deixar de mencionar o facto de que uma das noções que se encontram em estado implícito em toda a parte onde há homens, é da “responsabilidade” para com “outrem” (que é pano de fundo da obra de Emmanuel Lévinas). Quer dizer: o homem toma seu sentido maior na sua relação com o outro homem, com o próximo. Chegamos, assim, ao problema da “morada” do humano que não é mais simplesmente ser mas “ser para”. Parte-se da consideração dos sábios fariseus que atribuem o mal à liberdade humana. Não se pode encarar a história a não ser como um que “fazer humano”. Torna-se forçoso verificar que o judaísmo não conhece este reconhecimento da permanência e da recorrência do vórtice do mal que introduz o mundo cristão como dogma do pecado original. Daqui que resulta a importância primeira concedida à exigência ética. Neste sentido a experiência moral mosaico-profética (confontada com a grega) tem uma real significação pelo facto de se centrar no apelo vindo do outro, presente em carne e osso. “Sucede que, segundo Denis de Rougemont, nós temos uma experiência mais concreta e mais convincente do mal e do erro do que do bem e da verdade” (La part du diable, Paris, 1982, p. 231).

Amor/cura/caminhar

Temos debatido a questão do medo. Um dos seus fundamentos reside no facto de nos expormos e de nos assumirmos pelos padrões de invisibilidade. Entre as culturas indígenas a atenção ao que tem coração e significado torna-se crucial para se compreender precisamente a valorização da lógica do dom que exige partilha. Aqui eros - o amor - é uma porta para a cura. Falamos do princípio de reciprocidade, da capacidade de dar e receber, da capacidade de vincular-se, da própria comunhão. É um ponto importantíssimo. De resto, temos de perguntar-nos como é que as culturas apresentam suas próprias formas de manutenção de saúde e bem estar. Devemos pôr em evidência os quatro bálsamos da cura: contar histórias, o canto, a dança e o silêncio. Nas sociedades xamânicas o ritual e o cerimonial permitiam o acesso à psico mitologia – ou trabalho com imagens e memória. O problema é o sabermos como maximalizar a liberdade de tal modo que isso tenha como efeito a a minimilazação da coação. A ideia fundamental é a da abertura a novos horizontes. O que importa é sermos caminhantes e viajantes. Uma vez mais se verifica aquela verdade: caminhar consiste em uma ex – posição, em um estar fora de posição. O que é decisivo é ver o visível

Porto, 28 de Setembro de 2009

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