terça-feira, 22 de setembro de 2009

Depressão, purgatório e “mobile phone”

Na arte actual torna-se relevante a questão da depressão. É absolutamente exacto, e a poesia e o discurso político-ideológico actual o confirmam, que estamos confrontados com a emergência – no sentido mais genérico - de um paradigma depressivo. Isto é em parte assim porque a depressão é um estado inscrito na experiência profunda do ser contemporâneo. O huis clos do isolamento e a ruptura da intersubjectividade comunicacional deve ser tomado num sentido amplo, designando a hegemonia das dis-funções e o registro de uma constelação psíquica da personalidade neurasténica e esquizofrénica. Só que hoje, muito simplesmente, já ninguém crê na cartilha “surrealista” da libertação do inconsciente por meio da escrita automática. Ficou para trás a própria validade das vanguardas, marcadas pelo niiilismo e a subversão, no momento quem que assiste ao triunfo da estética e da época da “vaporização da arte”. Mas por degraus quase imperceptíveis acabou por se afirmar, ou pelo menos, ou enunciar o tema da vulnerabilidade (o informe, o inumano, o patético e, portanto, a concepção da arte como excreção) ou, precisamente, da relação catastrófica - apocalíptica - com o tempo.

Debilitamento

Numerosos factores contribuem para a aceitabilidade do paradigma depressivo ligado à essência mesma do moderno. Já ninguém crê nas promessas de felicidade. Nada mais nos satisfaz. A democracia “estabelecida”, “instalada”, ou “mercantilista” europeia, após um século, vê-se de novo repleta de excluídos e de novos escravos. É bem paradoxal ver que as nossas sociedades ricas e livres parecem também incapazes de exercer duravelmente uma influência emancipadora sobre o resto do mundo e, assim, o programa do consenso liberal e democrático. A experiência posterior à queda do muro de Berlim e da dissolução da URSS, em particular a partir dos anos 80, fez-nos cépticos face aos programas sociais ou políticos. Após a derrocada da razão utópica em nome da razão científica – a capitulação do colectivismo burocrático, por um lado, – e com o “fim das grandes narrativas”, anunciado por Jean François Lyotard em 1979, isto é, o desenvolvimento da democracia burguesa e da globalização - o mercado global que nos conduziu à era “pós-nacionalista” que se identifica com a sociedade da abundância à medida dos produtos de consumo, por outro lado, - já nenhuma doutrina política parece possuir o privilégio da “salvação”. Daí o fenómeno da excitação febril e embriaguez ainda em bases do “individualismo possessivo”. A ordem jurídica ocidental - converteu-se em máquina que perpetua as injustiças. Os aparelhos ideológicos e políticos vigentes já nem sequer legitimam uma aposta social precisa tendo em vista objectivos igualitários. Sabemos que o debilitamento das ideologias, o paternalismo e a retórica que há muito são parte da aura do poder político, inevitavelmente levam ao fatalismo e resignação histórica.

Cultura yupie

Não é necessário fazer um resumo minucioso. Embora imperfeito, nosso esboço é suficiente para estabelecer que estamos em plena emergência dessa economia de “casino”, com toda a especulação financeira e a formação de capital fictício (boa parte sem o lastro de qualquer crescimento real) mas também de uma cultura yupie, no sentido estrito, com os seus atavios de pequena nobreza. Aqui é preciso acentuar – com vista a ulteriores reflexões - a predominância de uma retórica obsessiva da competitividade internacional entre nações como se fossem empresas. Podemos, pois dizer que assistimos ao “fim da história”, no sentido definitivo das ideias liberais na política (democracia liberal) e na economia (capitalismo globalizado)? É importante verificar que o controle democrático – territorial – fundado no princípio da soberania do povo e um desencantado elenco de arranjos institucionais e regras – torna-se cada vez mais impotente face às forças multinacionais e internacionais da globalização. Isto significa também numa nova fase a difusão do american way of life ou da macdonaldização do consumo.

Docta spes

Muito embora o mercado como instituição-chave, o homo-economicus como modelo humano, o interesse próprio como motivação principal da acção, o individualismo como configuração triunfante recebam a menção favorável das nossas sociedades, não devemos esquecer que, como bem sugeriu Charles Taylor, existem “bens-constitutivos” que fundamentam nossas crenças e nos ajudam a implementar nossas opções. Tais bens formam parte de marcos valorativos que se desenvolvem na história. Porque falamos hoje comumente da fragmentação, da indeterminação e da intensa desconfiança de todos os discursos universais – ou para usar um termo favorito “totalizantes” (que são o marco do pensamento pós-moderno)? O que expressamente caracteriza a rejeição das meta narrativas ou das interpretações teóricas de larga escala pretensamente de aplicação universal? Quando nos deparamos, igualmente, ante a crise do pensamento iluminista? No entanto podemos e devemos – começar por referir que esta viragem não reflecte nenhuma mudança fundamental da condição social (porque, na verdade, por detrás do visível consenso liberal alguns problemas centrados na exarcebação da insegurança e da instablidade encontram abrigo na ordem colectiva). Nesta era do capitalismo tardio talvez estejamos em condições de elaborar uma visão realista e dramática do homem (onde se enobrece a cidadania moderna e o republicanismo, a utopia animada por uma docta spes). Nestas condições, como deixar de voltar a uma meditação sobre o horizonte ético e utópico, sobre o sentido de uma ética da compaixão, da libertação, da alteridade?

Catástrofe social

As desordens esquizofrénicas, o pânico, a ansiedade, o abuso de fármacos, o alcoolismo e a bi-polaridade exacerbam-se. Existem demonstrações convincentes e tangíveis de que em nossos dias a depressão assume, portanto, o perfil das tumultosas desordens psíquicas – tendo em conta o impacto da catástrofe social – que caracteriza a nossa cultura tardo-industrial. A reflexão sobre as figuras do deprimido e do pobre parecem não ter lugar na racionalidade moderna: eles embaraçam o mundo científico-técnico e o modelo económio neoliberal vigente. Escusado será dizer que o discurso científico e tecnológico escamoteando a figura do deprimido - relativizando-o - postula a “racionalização” para reconhecer a justeza e a validez da cultura tecnopolitana (a mercantilização). O historiador americano Immanuel Walerstein assinala estarmos a viver um “tempo de purgatório” – depois da extinção do wilsonismo e do leninismo - , mas pondo em evidência um tempo recheado de inúmeros problemas e de frequentes lutas carregadas mais de desespero do que de confiança. Tudo se quer privatizar: a saúde, a educação, as empresas públicas, a própria política. Apela-se aos grandes princípios do neo-liberalismo: a liberdade da empresa, a iniciativa privada, a competitividade, a maior produtividade, a agressividade comercial e a melhor qualidade de serviço (para os que podem pagá-lo).

Do in-habitual às causas perdidas

Num tempo de aceleração e de mobilização acelerada da experiência - e em que o “mobile phone” passou a ser parte de uma ideia de família, de intimidade, emergência e trabalho - a desordem social parece adquirida. Esta a situação de que teremos forçosamente de partir. A decantação, aqui apenas esboçada, permite-nos ver até onde e como a poesia – enquanto intentum estético-ético que resiste à communis opinio - pode ainda ser testemunho do nosso saeculum. A palavra secular provém do termo latino saeculum, significando “esta idade presente”. Não se pode ignorar que a poesia - contrapondo-se à luz meridiana da disciplina tecnopolitana actual e da sabedoria convencional -, pesar de muita retórica em sentido contrário, sempre alinhou com as “causas perdidas”. E, em notável grau, o in-habitual. Evidentemente: podemos considerá-la sob o ângulo da lógica do terceiro-incluído. Ou ainda: do delirium e da dementia: a exaustão do discernimento dos actos cognitivos. Nunca nada foi tão incompreendido como o seu ambitus desorganizador. A sua ordem é a ordem do avesso. Uma vez que caminha de encontro à imagin/nação. A Via Láctea. O inesperado. O que nos interpela in venire…

Sem comentários:

Enviar um comentário