domingo, 13 de abril de 2014

DO SENTIMENTO "DE SI" E DO (SOBR)EROTISMO EM ALFONSO LÁUZARA MARTÍNEZ


 

Noite ~ Día” de Alfonso Láuzara Martínez  (Q de Vian Cadernos, A Porta Verde do Sétimo Andar, 2013)  conecta-nos com a simbólica terrestre e saturnina, aquática e lunar, aérea e mercurial, ígnea, solar e intelectual (ao menos “em tese”). Redescobre-se justamente o pendor de uma escrita erótica - de per si - da libido - onde se privilegia a língua (galega) como desejo.  Seja lícito, porém, pôr outra vez em foco uma arque-tipologia das polaridades dialécticas e das antinomias. Identifica-se - eventualmente - com o complexo de valorações contraditórias e complementares. E, contudo, uma poemática que, no seu conjunto, associa-se a um mosaico de estados afectivos (restringindo o sentido das projecções do (in)consciente). O que aqui emerge é uma vertente mítico-simbólica (partindo das estruturas arcaicas e imemoriais). E, todavia, o onírico, o amor, filos, o corpo como ser sexuado.

duplo curso

Dado o quadro da fenomenologia do imaginário - o âmbito restrito, - só por si - , da ontologia simbólica - a vis poética - poderemos estabelecer, resumidamente, de que maneira se desenvolve a dialéctica da justaposição dos contrários (ou dos contraditórios)? Mas onde é preciso considerar a configuração de um duplo curso - a síntese disjuntiva - onde se evoca a quântica sexual - as zonas de indeterminação (intersecção) do masculino e do feminino, o sentimento de si ?

macro(micro)cosmos

Notar-se-á, de passagem, que a maioria das visões cosmogónicas indicam que a noite procedeu o dia. Poder-se-ia referir a cultura grega que forjou a crença de que a noite é filha do caos. E que da escuridão e da morte nasceu - em definitivo - o amor (a ordem e a beleza, como tal). E assim o amor - repito - deu origem à luz e ao seu companheiro o dia radioso. Chegamos, entretanto, à questão dos seis “épocas” e do tempo requerido pela criação - documentado no livro hebraico Beréshit (No Princípio, Gênesis) - em que o sol e a lua só surgem de per si no “quarto dia”. Assim, por certo, a palavra hebraica "dia" (yom) pode implicar um largo período de tempo. Resulta evidente que aqui "dia" abarca mais que vinte e quatro horas.  Se bem que ainda se possa ainda estabelecer uma distinção - seguindo a tradição extremo-oriental - entre as duas partes do mundo que se complementam - o céu e a terra - o yang (luminoso) e o yin (escuro) - é crucial compreender que - neste sintético quadro de referência - para cada ser existe uma analogia entre o macro-cosmos e o micro-cosmos, as duas metades do andrógino primordial.

coincidentia oppositorum

O que justifica a semiosis de uma escrita pulsional que - para lá das proposições significantes - remete-nos (no sentido lato do termo) a uma polaridade de sentido e, por conseguinte, a uma dialéctica arcana (auto-implicativa)? Na base deste poemário - em que se cristaliza a forma supplementum do impulso sexual originário - está a proeminência de um binómio onde coexistem hic et nunc a pulsão; o estado de prazer e o seu correlato, o desprazer; a irrupção do desejo, que se exprime sob a forma de estado de expectativa e de busca, alimentado por representações (inconscientes ou conscientes).

síntese lírica

Reconhecer-se-á a pre-figuração de um título antinómico - da correspondentia  - luz e treva - que veicula, ademais, uma dimensão originária, fundante.  Precisemos, ainda, que este poemário reproduz a “con-dicção” lírica - ou é a explicitação  da coincidentia oppositorum. Compreende a articulação de um (sobr)erotismo - assente numa visão processual binária - permite-nos elucidar um arquétipo cósmico.  Um livro indispensável onde não podemos deixar de destacar as ilustrações de Elisabete Pires Monteiro que tem por correlato as fulgurações do conhecimento do outro: o amor (eros). Porquanto, nesse entrelaçamento, o corpo torna-se linguagem e a linguagem inscreve-se na materialidade do corpo.

Alexandre Teixeira Mendes

Porta XIII - Vila Nova de Cerveira - 15 de Março de 2014

quinta-feira, 3 de abril de 2014

“XAMANISMOS” DE ELISABETE PIRES MONTEIRO:

A METACRONICIDADE OU O PRIMITIVISMO DO COMPLEXO

“O ser humano é um animal que não pode viver unicamente na temporalidade terrestre e ele procura articular essa temporalidade sobre uma vida cósmica ou eterna (metacronicidade)”

Jean Marejko, Le Roi du Technocosme est nu in Temps Cosmique Histoire Humaine, Paris, Vrin, 1996, p. 95-96

 

Elisabete Pires Monteiro (Sully-sur-Loire, 1974) condensa em si uma miríade de associações no enraizamento de temas arcaicos (cosmogónicos). Pode ainda reconhecer-se esse estatuto de uma arte da (intra)verificação da linguagem religiosa e, portanto, das figuras-arquetípicas.  Operando subliminarmente nas fissuras da significação, ora com traços iniciáticos e terapêuticos, ora revestindo uma dimensão de depuração (tecnicista e intelectual), a sua pintura é a revelação do primitivismo do complexo, da cosmosofia e da aventura metapsíquica. De facto, a ênfase de uma arte codificada (gaia ciência ou gaio saber) assente numa  (proto)linguagem associada ao onírico  - o místico-religioso - a transmutação e a metamorfose - intercepta  a instância do  diferencial feminino  (associada ao poético-literário e ao cosmovisional-simbólico). E aqui é pertinente evocar a Terra-Mãe - enquanto categoria prévia  - e cume de acesso a uma visão tipicamente humana (humanada) onde se apreendem - directa e imediatamente - os fenómenos catatónicos ou subterrâneos (nocturnos) e metatónicos, urânicos ou celestes (transcendentes). Conexo com os pressupostos de uma simbólica em que o corpo é terráqueo, o espírito solar-celeste, e a alma, lunar. 

Co-implicação simbólica

Convém sublinhar que a criação pictórica de Elisabete Pires Monteiro partilha até ao extremo uma visão do mundo resolutamente transversal, surreal, côncava, reversiva. A lógica estética-religiosa ou metamorfótica é algo constitutivo, essencial, estrutural, nesta pintura. E, evidentemente, a metacronicidade. De resto, se se considerarem mais de perto estes quadros -  na sua  co-implicação simbólica -  pode ver-se aqui claramente a sua associação ao arquetípico da gaia, mater, mãe ou elemento feminino, receptor, fecundável,  Mais do que um mero exercício assente nas técnicas convencionais ou  experimentais, a sua pintura - na ligação ao pensamento mágico - fixa a nossa atenção nas abordagens do xamanismo que está profundamente enraizado na experiência extática visionária. Desde logo, em consonância com o que Roger Bastide chama o “sagrado selvagem”.  Parece-nos, no entanto, que no seu trabalho -  “em série” -  entrelaçam-se  as marcas do jogo do mundo e do jogo da criação (poesis).  O vínculo ao  xamanismo - a religiosidade naturalista assente nas visões proféticas, conhecimento judicioso ou a visão em voo - deixa-se facilmente apreender por uma análise compreensiva.

Vidente e guardião das tradições

“Xamanismos” – título da exposição – enquanto partilha de uma pintura-padrão - mítico-sacral e totémica – cognoscitiva - encruzilhada do sonho como religião da mente - é fundamentalmente uma homenagem ao xamã e, em todo o caso, o seu mundo tribal (na valorização - a partir das forças invisíveis do universo - do numinoso- da demanda do centro sagrado do mundo - a árvore cósmica). Retenhamos apenas, por agora, um conjunto de quadros-variações, onde os xamãs não são meramente capturados; são tornados uma tradição viva – como “especialistas do sagrado” - que trabalham secretamente  técnicas especiais -  que incluem jejum, meditação e o uso de substâncias químicas – ervas intoxicantes – botânica dos alucinogénios sagrados - capazes de dispararem estados alternativos de consciência.  Consideremos mais de perto o seu papel fundamental de adivinho, vidente, mágico, poeta, cantor, artista, profeta da caça e do tempo, guardião das tradições e, por consequência, curandeiro das doenças do corpo e do espírito. Reencontramos neste ponto o médico-ervanário manipulando complexas misturas terapêuticas e farmacológicas (com base nos critérios de que as plantas psicotrópicas são mágicas e sagradas).

Mundo onírico arcaico

Se quisermos traçar o quadro destas pinturas - variações arquétipas ou imagens primitivas - , há, pois, antes de mais, que determinar aquilo que se considera como mundo do xamã. Não é esse aqui o nosso propósito. Quando nos apercebemos - esforçadamente - dos esteios e dos caminhos duma arte plena de reminiscências e de projecções (iluminação involuntária dos desvãos e subsolos do nosso mundo psíquico por exemplo), apercebemo-nos, assimilando-a a um mundo onírico arcaico, “eterno” e “ubíquo” (como diria C.G. Jung). Todos sabemos da importância extraordinária que, nestes dois últimos séculos, foi tomando o estudo da história das religiões sobre o sagrado. A etno-história e a antropologia   - na sua reflexão sobre a trajectória da humanidade  - mostraram-nos que as mais antigas representações artísticas tiveram o seu ponto de partida nas preocupações mágico-religiosas. Neste sentido, é de salientar que estas imagens desenhadas, por assim dizer, em plataformas e em nichos naturais - do tipo santuário - na sua precisão técnica - enquanto tentativa de retractar o movimento cinemático - aparecem-nos  sobretudo como figuras super-realistas que carregam uma crença forte na eficácia da acção simbólica.

“Medecine-man”, “brujo”

O importante e decisivo dos desenhos sagrados gravados - no fundo das cavernas - está no facto de nos revelarem não somente o fulcro da auto-comunicação com o “numinoso” -  a divindade em toda a amplitude da sua realidade  - como alicerce das forças que unem homens e animais. E, consequentemente, a consignação da chamada “meta-experiência” mística, mas também da exaltação interior e, concludentemente, da crença fundada do que se não vê - as realidades espirituais. Aqui se entreabre um campo imenso - o da religião arcaica - o que é a definição mesma da religião primitiva - sob o influxo do xamã (que representa afinal o guardião genuíno e inflexível do saber tradicional na ligação ao mundo natural e espiritual) . Ele assume-se, em suas orientações fundamentais, como o especialista de plantas sagradas, o “medicine-man” e o “brujo”. O que Mircea Elíade não cessa de reconhecer é, se se quiser, a sintonia que existe entre o “homem” e o “ser religioso”. Mantém, inegavelmente, o parecer de que o religioso não é um “estádio”, mas um elemento - voltemo-lo a dizer - da “consciência humana”. Ancorado nesta perspectiva assinala, por outro lado, que as formas (algumas formas) do sagrado podem ser criações culturais e são-no de facto.. 

Alexandre Teixeira Mendes

Porto, 3 de Abril de 2014

segunda-feira, 24 de março de 2014

MAR DO INTÉRMINO - RASTRO DO SAL - COMETA HALLEY -


 LUZ DO EXÍGUO - PEDRAS DO INFLEXÍVEL -
 

sob a luz  do exíguo - essas pedras do inflexível - 

ilhéu - espuma - mar do intérmino - cometa halley - 



VIA LÁCTEA - STILLAE TEMPORUM -


via láctea - neurastenia - stillae temporum -

êxtase da cal -  rastro do sal - palavra ilegível -



MONTANHAS DO INTACTO - DISTENSIO ANIMI -


as montanhas do intacto - relâmpagos - chão inevidente -

o que se furta à cabra - alada -  do inábil - distensio animi -
 


VOZ DO INEPTO - O DESERDADO
 
ignoro a voz do inepto - seu código secreto - a cegueira -

sob  a palavra anómala - da intransigência  - o deserdado -