quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

NOS CONFINS DO IRRESOLÚVEL

1.

sobre os arcos do disforme - ante a figura que se esvai - a cerrada pupila -

o tudo-nada - onde se descortina - deus e o diabo - a nave - pedra do inábil -


2.

nos confins do irresolúvel - o frémito dos mapas do desconforme - a luz reflectida -

saber-me nas imagens inverosímeis - desenhos do indecifrável - o cavalete do aéreo -

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

"MÉNAGE À TROIS"

- da “urbs” à discursificação da vida quotidiana


Podemos indagar-nos sobre a travessia da escrita de Zé Pinto Leite, Pedro de Andrade e José Soares Martins - a poética comum de “Ménage à trois” (Cordão da Leitura, Porto, 2011), visando fixar, ao mesmo tempo, o continuum das suas marcas inter-textuais, tropológicas. Os livros aqui agrupados – “Jardim das Delícias”, “Poesia Sociológica ou Poesia em Directo” e “Alquimias” - tríptico de três philoi (amigos) - coloca em evidência o sentido (com)partilhado das palavras-chave ou visões encadeadas - a corporizar uma dinâmica (inter)textual -(multi)referencial. Temos aqui bem patenteado um acervo de práticas poéticas associadas à contracultura e, portanto, o desencanto (na cultura de crise). Parte-se de um universo discursivo marcado pela tensão expressiva e simbólica do real (na conexão com a experiência quotidiana). No primado das incrições sócio-ideológicas - este conjunto de poemas (diferenciados ou diferenciantes) privilegiam um vocabulário não-canônico - imprevisível - toda uma gama de tópicos críticos-em-acto e lírico-sentimentais.

paráfrase romântica e híbrida

Falámos dos pressupostos básicos de uma poética do singular-plural - de rupturas e derivas - a veicular (total ou parcialmente): 1) uma discursificação da vida quotidiana; 2) uma irreverência ou “pour cause” uma “revêrie” política (que envolve o experimento adicional de reflexão sociológica); 3) um mundo visionário ou trans-versal (que condensa a desconstrução ou a paráfrase romântica). No seu registro híbrido - mas também contaminação de géneros - torna-se visível o jogo de figuração e ficcionalização do eu (correlativa indecibilidade). As referências culturais são diversas e vão desde as obras de certos contestários yippies e poetas americanos - Allen Ginsberg, Gregory Corso e Lawrence Ferllinghetti -, à poesia romântica inglesa, Brecht e Maiakovski, e ainda a conceituação sociológica e o seu enfoque intra-ideológico (activista).

psicadelia e nomadismo

“O Jardim das Delícias”de Zé Pinto Leite, título roubado a uma obra árabe do século XIV, surge-nos marcada pela contracultura - os insights da psicadelia - a visão errática e nómada do mundo. Todavia uma poética da “urbs” que - nas suas conexões ou registros especulares - surge-nos ancorada na pulsão - o transbordamento pulsional - e, por conseguinte, a alquimia e a imaginação activa. Assim:

à descoberta
do eu realidade-imagem
do tempo alquímico (p.55)

Convém fazer referência - em sentido lato e algo impróprio - a um conjunto de textos (como uma valência eclética, codificação múltipla ou até sobre-codificação) onde se cruzam, em última análise, o pastiche e a citação “beat generation”. Em que a diferença reside na máxima operância de uma poética com base no carácter expansivo e aventuroso da arte. Zé Pinto Leite re-equaciona, repetidas vezes, a experiência do sensível - a partir justamente dum apego perceptivo ou, se quisermos, cognitivo-visionário (em consonância estrita com os mantras, o zen-budismo, a vagabundagem e o beatífico - na aproximação a Kerouac). Existe efectivamente uma demanda poética sob o signo da performance - a evenemencialidade da linguagem - os dispositivos pulsionais. Um poemário que nos remete, pois, aos arcanos do experiencial - o hiper-real - o “pathos” decadentista. E isto a partir de um universo discursivo marcado pela instância psicodélica-catárquica - a tensão expressiva e simbólica – a língua como desejo - inflexão inusitada.

sociologia e activismo

Em “Poesia Sociológica ou Poesia em Directo” de Pedro de Andrade a microsociologia torna-se inspiração: desdobramento autónomo de um discurso crítico das práticas sociais. Aqui se combinam as reflexões em torno do poder e do establishment (a sociedade móbil, onde o homem surge-nos votado a ser consumidor-usuário). O que é característico da realidade social é que - em rigor - não se pode reduzir a uma simples soma de disposições ou de manifestações individuais. Depreende-se que a tentativa sociológica manifesta-se igualmente quando esta mostra todos os condicionamentos sociais geradores de evidências. O poeta não é inimigo do homo sociologicus. De resto, a poesia revela-se, por sua própria natureza, uma outra versão da errância - da sub-versão política e ideológica - enquanto corolário do confronto com o horizonte pré-dado - abertura para a visão (as chamadas experiências visionárias) e a história (mundo). Delineia-se, desta forma, uma escrita que amplia a denúncia do grande supermercado universal - das políticas neo-conservadoras - e que contribui, portanto, para afirmar a ideologia-realidade da contestação (apocalíptica). Há certos elementos que definem o actual processo social - marcado pela super-programação - o descontentamento e o niilismo - onde impera: 1) a necessidade artificial; 2) a usura planificada; 3) a apatia e o conformismo das massas; 4) a depressão. Noutros termos: 5) os bloqueios e as discriminações; 6) o medo e a impotência política; 7) o cinismo ineficaz e o culto do “rei dinheiro” (nas derivações do capitalismo financeiro).

Nesta política somos todos celebrados
Logo, pró-escritos
Logo, prescritos

Nesta cultura, somos todos adiados
Logo, re-escritos
Logo, rescritos (p. 96)

A poesia de Pedro Andrade alude ao “infinito da negação”- convida ao activismo político - o utopismo revolucionário. Surge-nos comprometida com o planfetarismo - na formulação e fixação de representações (ou melhor: de leituras) do texto social. Ademais depreciativa e fustigadora do poder e dos seus símbolos - repressores ideológicos. Na primazia da revolta e da desobediência civil - do “différend” - evoca Maiakovski e, sobretudo, Brecht. Nele se passeia a figura do anarca, indivíduo rebelde.

lirismo sentimental

“Alquimias” de José Soares Martins re-assume a aura romântica. Poderíamos falar de uma poética da catarse (sob o influxo das visões, dos sentimentos e das iluminações rimbaudianas). Trata-se, pois, de um poemário onde se increve (de forma directa, imediata) um transbordamento pulsional (onde se exorciza a configuração amorosa). A primazia pertence, por isso mesmo, à ordem contingente de um lirismo sentimental (tendo mesmo em conta a sua filiação romântica inglesa ou, ainda, alemã). Lembramos o élan interior destes poemas onde se toma em consideração a carência e a plenitude do “sentido” – o homo viator - as alquimias e as moradas do “sentir”:

Falaste-me do destino dos erros vários
Que nos nossos passos se engendravam
Chovia e a minha alma dolorida
Abria-se às águas da Primavera
Recordei Mântua essa noite de chuva
Com Leopardi debaixo do braço
E uma solidão enorme espelhada
Nas mil e uma janelas do palácio de San Giogio (p. 107)

Pode dizer-se, contudo, que estes poemas nos remetem a um tipo de escrita erudita - cujos maîtres á lire são Shelley e Keats, Pessoa e Hölderlin, Ginsberg e Bowles. Um discurso (tran)sensorial - da desmedida do ser - da verdade do amor como embriaguez e transgressão (em que os protagonistas são o corpo e as vicissitudes do desejo).

carpe diem e hybris trágica

Não há dúvida de que o forte pendor intimista - existencial - da poética de José Soares Martins revela-nos uma escrita onde se põe em relevo a magia e a transmutação (sob o prisma da voz do outro - a retoma do intertexto cultural - a hybris trágica). O impacto desta poesia parece estar na sua marca híbrida, mescla peculiar de transgressão - como um regime compulsivo - de rigorismo - mestria. O que salta à vista é, acima de tudo, o seu lirismo - no fluxo de um idioma sumptuoso - selectivo - (um) a explícita melancolia. Tende portanto, nestas condições, à confirmação (ou refutação) emocional das possibilidades excessivas - à acedia - o carpe diem. Também de denúncia do inumano cuja marca indelével foi a experiência da barbárie nazi que atingiu o seu paroxismo na apoteose do horror de Auschwitz. Um exemplo apenas:

Silêncio. Igual ao de Auschwitz.
Silêncio no comboio da Europa
Que percorre os carris na noite de todas
as insónias
na noite em que me beijas
como a serpente do paraíso… (p. 121)

Alexandre Teixeira Mendes

Livraria Bertrand Dolce Vita
Porto, 18 de Fevereiro de 2012

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

SAGACIDADE DO DESERTO - RESPLENDOR DA LUZ

1.

Onde o inciso - sob a lâmina do irreverente -

A parca desmesura - da imagem intermitente -

Brônquios - que retive - nesse corpo imóvel -

2.

A nuvem do inexorável - que assoma - na retina -

Resplendor da luz - mente recôndita - inacessível -

Pedra dúctil - mapa-múndi - sagacidade do deserto -

3.

Perscrutei as fotos - do incessante - diante das águas -

Acostumei-me à lente nublada - a insistência do branco -

Signo que se extingue - prima facie - desígnio do imerso -