quarta-feira, 30 de setembro de 2009

LES INSTANTS (DÉ)COMPOSÉS NA POESIA DE ELISABETE PIRES MONTEIRO

1. LE LOINTAIN DÉSERT

T'ais-je un jour connu?
Mirage dans le lointain désert
Source qui a puisé l'existence
Je t'ai connu bien avant que ton corps naisse.

2. DES NONS DE L`ÂME

Pourquoi n'es-tu pas juste une âme?
Au lieu d'un corp qui torturerais le mien
Tu serais lá pour me completer
Je t'ai cherché partout mais tu n'étais pas visible
Restes, ne t'envoles pas à nouveau

3. TEMPS ET ÊTRE

A quoi bon chercher le temps si celui-ci est impalpable
Y a t-il encore des traces de moi
dans ce décor inchangeable?Où es-tu?
Je ne t'entends plus. Qui es-tu?

Elisabete Pires Monteiro

27/05/2009 Saint-Benoît-sur-Loire

4. SAINT-GERMAIN

Saint-Germain je vois des pieds partout
Tant de pieds et je ne les vois plus!
Pourquoi mon coeur à remplacer mes yeux
et ne me laisse plus rien voir du tout

Elisabete Pires Monteiro

31/05/2009 Paris

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O testemunho do “de-fora”

A diferença como base

Michel Foucault chamou a atenção para a formação discursiva (a senda dos enunciados que nos envolvem). Considera - segundo os seus próprios termos - que o “curso” da história - o núcleo central da narrativa da acção humana - desde o passado até ao presente - é uma espécie de ilusão. Recorde-se que o passado – como inscrição – doação - assinatura do mundo – é sempre uma invenção do presente - e, em consequência, um fardo. O problema é que o homem se vê circunscrito à (inaceitável) violência - ao fechamento cognitivo - às patologias do social. Mas a questão talvez se coloque nestes termos: somos coisas insignificantes e raramente nos pertencemos. A relação com o “de-fora” - a exterioridade selvagem - tende a prevalecer. Não, o homem não é a medida de todas as coisas. Será sempre um ser paradoxal - in-situado – imerso no demoníaco da linguagem - que, em sentido próprio, acaba por reproduzir inevitavelmente as (macro)estruturas estabelecidas.

anómalo

Compreende-se o servo mecanismo das organizações e instituições cada vez que o ser humano incorpora - de forma subjacente - a herança e os automatismos culturais. Elas trazem-o de volta a uma “normalidade” - sinuosa - às atitudes mentais (pré)formatadas. Podemos entrever comportamentos num espectro normativo – de resistência e transferência expresso em sintomas – e, por conseguinte, de incorporação dos códigos da violência institucionalizada. Ocupemo-nos da experiência (inconsciente) do mundo partindo do que nos força ao reajuste, isto é, à produção de sujeitos dóceis. Os ricos tornam-se ostensivamente mais ricos e aqueles que não têm trabalho são cada vez mais excluídos da sociedade oficial. Situamo-nos, assim, em plena problemática da lógica do capital e do mercado, da loucura privativa. A diferença está na massa crescente de seres humanos a soçobrar na depressão e no desespero. Nada é inocente, sentencia Michel Foucalt. Não é ocioso fazer esta constatação. A sociedade disciplinar (que se escuda no poder da norma) acabou por criar dispositivos para vigiar e punir (que nos amesquinham). O homem encontra-se tutelado pelos centros de decisão, as formas e os tipos de controle. Ele é múltiplo e vive no múltiplo. Emerso na ordem contingente – na vulnerabilidade - sente-se livre e preso ao mesmo tempo.

(in)coerência

O ser humano – no seu acúmulo de informação - tende à aparente (in)coerência - remete-se – nas palavras de Henri Laborit - ao aprendizado da recompensa e da punição. Além das explosões de agressividade competitiva e da busca da dominação - no quadro inter individual sócio-histórico - temos a agressividade ou as depressões. Parte-se de três eixos básicos: o saber, o poder, o si (cujas formas do conteúdo variam com a história). Não fica aqui deslocado lembrar que tudo se torna transitório e mortal - anómalo e (dis)contínuo- prevalecendo o comportamento territorial predador. Tudo quanto se disse reporta ao problema da agressividade constitucional do ser humano contra o outro. Nosso pressuposto é o do “riso soberano” - a (auto)contradição. Aqui a multiplicidade não se esconde; acentuemos somente o que nos vincula à linguagem e às construções imaginárias - o campo da política da revolta - o (auto)despredimento e a (auto)invenção? Poética?

“desolação”

Hoje questiona-se a capacidade da razão de produzir conhecimentos verdadeiros (e mesmo, eventualmente, de construir “normas” para vida melhores). Como explicar a nossa actual acomodação à desolação da vida quotidiana? Como explicar hoje que a transgressão seja um meio essencial de dominação? Emersos no jogo social (hiper)festivo – arbitrário - que inclui o apelo humanitário e o caritativo – onde se pode associar a afirmação de um eu tribalizado, globalizado, universalizado, – assiste-se, na verdade, à revelação da comédia da existência e da existência como comédia. Percebe-se que estamos no limiar de um salto no desconhecido que destruirá todas as nossas maneiras de pensar fundadas nas relações entre indivíduos (neotônicas) e espécies (naturais). Todos conhecemos os seus bastidores mais imediatos - comerciantes e banqueiros sem escrúpulos, mágicos suspeitos, médicos e os sábios recorrendo à fabricação de uma “pós-humanidade”. Poderíamos, portanto, afirmar que o que está em causa é o corpo que tem por estrutura um estado de neotenia permanente? Como pôr cobro a este andar às cegas?

dependência

Nesta nova era técnico-científica amplia-se o grau de vulnerabilidade e, não o esqueçamos, de humilhação pessoal. Não hesitamos aqui em referirmo-nos a uma sociedade que parta de facto que a fragilidade e a dependência é algo que todos os indivíduos experimentam em algum momento da sua vida (Alasdair MacIntyre, Animales racionales y dependientes. Porqué los seres humanos necessitamos las virtudes, Barcelona, Paidós, 2001, p. 154). Antes de mais nada, impõe-se uma verificação: a centralidade da vulnerabilidade humana que tem múltiplas facetas. O homem - enquanto animal, ser vivo, corporeidade e anima, - é vulnerável. Enquanto neoteno – termo inventado pelo antomista holandês Louis Bolk - está predisposto à domesticação. Falamos não simplesmente da aceleração dos fenómenos ligados à globalização e das tecnologias da informação que, na maior parte dos casos, transformaram a nossa experiência do espaço e do tempo, mas do declínio das grandes narrativas e do enfraquecimento de agências nômicas tradicionais (a religião e a política).

Paradoxo

Também é necessário fazer referência ao paradoxo (a omnipresença do paradoxo). O mundo do paradoxo é o mundo da síntese impossível. A verdade é que a lógica do paradoxo e a lógica da loucura entrecruzam-se. Pensar o impensável é, essencialmente, pensar o paradoxo e, mais particularmente, o carácter aporético do paradoxo (que pode, com frequência tomar o sentido de um problema insolúvel). Também é preciso não esquecer que a estrutura mesma do real é paradoxal. Mas isso introduz-nos já na relação originária entre o pensamento e o ser que institui-se na ligação ao paradoxo. Ora se a realidade é paradoxal, o pensamento não pode senão constituir-se na paradoxalidade. Constatamos, por conseguinte, que a estrutura paradoxal do real determina da mesma maneira a do pensamento. Julgamos, por isso, que o paradoxo é necessário para determinar a nossa condição humana. Para Pascal, o paradoxo está presente em tudo, do discurso sobre a realidade à realidade ela própria. Seguramente. Entendemos por isso que é preciso assumir – como assinalava Kierkegaard - o paradoxo.

Natalidade

A palavra humanismo adquiriu uma força mágica. Será lícito o simples desejo de definir em que consiste a humanidade do homem? Quando o humanismo funciona como uma matriz, inclusiva e excludente ao mesmo tempo? Compreendemos hoje a necessidade da abertura a maneiras novas de ser sujeito num mundo de diferenças. O homem é, para usarmos a terminologia de Hannah Arendt, um “initium”, um princípio e um principiante. Actuar está – por conseguinte - estreitamente relacionado com um dos aspectos mais gerais da existência humana, a natalidade. Uma coisa porém é certa: vivemos na sombra de uma época histórica em que o genocídio esteve motivado e justificado por uma definição do “verdadeiro” homem. Todos nós estamos sujeitos às consequências da pluralidade humana e portanto das variações de uma natureza humana universal. É necessário, pois, abandonar a ideia de que conhecer o outro é uma condição necessária e suficiente para estabelecer uma relação com ele. Como quer que seja, o ponto decisivo é a diferença, ela corresponde ao facto de que somos distintos e que as diferenças existem exactamente tal como as experimentamos e deparamos. Ora, sucede que a diferença, na opinião de Gert Biesta, nos exige outra atitude face à pluralidade e a alteridade, aquela em que noções como respeito, compaixão e responsabilidade tenham prioridade sobre noções como conhecimento e compreensão (Acerca de la humanidade in Mensajes e-ducativos desde tierra de nadie, p. 123, Barcelona, 2006). Torna-se imperiosa uma linguaguem para a experência (onde se deixa adivinhar a voz da paixão). E, no entanto, a língua da conversação, propriamente dita (como contraposição a essa língua neutra em que articulam os discursos técnico-científicos). Evidentemente a experiência é sempre do singular, não do individual ou do particular mas do singular. “E o singular, segundo Jorge Larrrosa, é precisamente aquilo do que não pode haver ciência, mas sim paixão” (Una lengua para la conversación in Mensajes e-ducativos desde tierra de nadie, p. 53, Barcelona, 2006). A experiência, neste caso, tem a ver com o não-saber, com o limite do que não sabemos. E deste modo, tem a ver com o não-dizer, com o limite do dizer.

política do sintoma

Na verdade, impõe-se-nos falar da psicanálise cujo centro e núcleo é da ordem do “impossível” (no mesmo sentido que os de governar e de educar) É importante lembrar que a psicanálise opera pela palavra. Efectivamente o trabalho de cura analítica consiste em tornar possível o advento de uma palavra no lugar do sintoma. Trata-se aqui de dar-se efectivamente relevo à palavra e ao pensamento. É, portanto, correcto dizer-se que o sintoma fala. Sucede que o sintoma tem a “verdade” como causa, mas é da “mentira” que ele nasce. O autor de “Três ensaios sobre a sexualidade” descobriu - num certo momento - que o segredo da análise se situa na “transferência”. Colocou, indubitavelmente, em evidência, o que nela fazia obstáculo, a saber, a “resistência”. E não ficamos por aqui. Ele concebeu a pulsão de morte como destrutividade autónoma. Ainda melhor: pôs a claro a necessidade de dar relevo à pulsão da morte (enquanto disjuntiva, separadora e geradora de negações) que seria o outro pólo do libido. Isso explica a silhueta lúcifer-amor - que delimita o essencial da problemática levantada pela neurose e revelada pela experiência analítica. Os indivíduos, segundo Siegmund Freud, tornam-se nevróticos por haverem reprimido demasiado os seus desejos e instintos. Ele reconheceu (de facto) o fardo que a existência representa para o ser humano. Todo o ênfase recai na insatisfação humana. O autor de “O futuro de uma ilusão” situou “a infelicidade geral” da sociedade como o limite da terapêutica e da normalidade.

Vontade de destruição

Não é menos evidente a conclusão de que somos seres fundamentalmente psicóticos. Não é psicótico o que é “alienado” ou, para empregar a terminologia de R.D. Laing, “o que tem a personalidade dividida”, mas a personalidade “normal”. A alienação e a cisão são, certamente, as condições básicas para a nossa normalidade repressiva e seus aparatos de instituções anti-humanas. Existe um elo inconsciente que liga os indivíduos aos seus senhores. Esse será um processo de esclarecer, simultaneamente, a figura da dominação e servidão (o senhor e o escravo). O adversário está em nós. Resumindo: vivemos para destruir. Essa “vontade de destruição” (no sentido que lhe dá Lacan) corresponde, não só, como foi dito várias vezes, à aceitação da maldade originária no homem, mas também (precisamente) a maldade que se exerce não em nome do princípio do prazer ou que se coloque a serviço da sexualidade, mas que se afirma independentemente de ambos.

ser-para

Não podemos deixar de mencionar o facto de que uma das noções que se encontram em estado implícito em toda a parte onde há homens, é da “responsabilidade” para com “outrem” (que é pano de fundo da obra de Emmanuel Lévinas). Quer dizer: o homem toma seu sentido maior na sua relação com o outro homem, com o próximo. Chegamos, assim, ao problema da “morada” do humano que não é mais simplesmente ser mas “ser para”. Parte-se da consideração dos sábios fariseus que atribuem o mal à liberdade humana. Não se pode encarar a história a não ser como um que “fazer humano”. Torna-se forçoso verificar que o judaísmo não conhece este reconhecimento da permanência e da recorrência do vórtice do mal que introduz o mundo cristão como dogma do pecado original. Daqui que resulta a importância primeira concedida à exigência ética. Neste sentido a experiência moral mosaico-profética (confontada com a grega) tem uma real significação pelo facto de se centrar no apelo vindo do outro, presente em carne e osso. “Sucede que, segundo Denis de Rougemont, nós temos uma experiência mais concreta e mais convincente do mal e do erro do que do bem e da verdade” (La part du diable, Paris, 1982, p. 231).

Amor/cura/caminhar

Temos debatido a questão do medo. Um dos seus fundamentos reside no facto de nos expormos e de nos assumirmos pelos padrões de invisibilidade. Entre as culturas indígenas a atenção ao que tem coração e significado torna-se crucial para se compreender precisamente a valorização da lógica do dom que exige partilha. Aqui eros - o amor - é uma porta para a cura. Falamos do princípio de reciprocidade, da capacidade de dar e receber, da capacidade de vincular-se, da própria comunhão. É um ponto importantíssimo. De resto, temos de perguntar-nos como é que as culturas apresentam suas próprias formas de manutenção de saúde e bem estar. Devemos pôr em evidência os quatro bálsamos da cura: contar histórias, o canto, a dança e o silêncio. Nas sociedades xamânicas o ritual e o cerimonial permitiam o acesso à psico mitologia – ou trabalho com imagens e memória. O problema é o sabermos como maximalizar a liberdade de tal modo que isso tenha como efeito a a minimilazação da coação. A ideia fundamental é a da abertura a novos horizontes. O que importa é sermos caminhantes e viajantes. Uma vez mais se verifica aquela verdade: caminhar consiste em uma ex – posição, em um estar fora de posição. O que é decisivo é ver o visível

Porto, 28 de Setembro de 2009

ROSA ALCHÉMICA

- Quem se detém na treva iluminada - desconfia do terrestre -
E todavia se desdobra - nesse perspicare ad infinitum -
Permanece como um apátrida - na errância - sobre a pedra - alucinada -
Quem cala a justeza da literatura - a mestria da obra - o irreprimível
Quem nesse apego do simples - arcana verba - irrompe na scriptura -
Pela voz do impensado se ajusta ao assombro - da voz - o que emudece -
Quem renuncia - ó rosa alchemica - ao coração - o resplendor da carne -
Nesse ímpeto da prestidigitação - da arte - ignora o actual momento egípcio -
Na proximidade do tremor e temor se precipita no transitório - até às nuvens -
Entre os lábios - não conhece códigos - ante os relâmpagos - fica à merce do caos
Quem enaltece este tempo de assassinos - os fedeli d'amore - as altas torres –

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

volúpia do cisne

Perpetuas a volúpia do cisne

Sobre os plátanos a lucidez

Do corpo quando te despes

nuvens do obstinado

Que corpo fugaz se insinua

Nas nuvens do obstinado

Inebriado me arrebata

Ancas e ombros toda a temeridade

nudez do sumptuoso

Dir-te-ei a voz da loucura

O corpo do inominável

A nudez do sumptuoso

Na penumbra dos sinais

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Foto

A foto do jovem malcolm lowry

Me revela o anónimo - o desastre -

O que se furta à voz impenetrável

Da desolação - o inalcançável -


Amesterdam

Diante da sinagoga de amesterdam

Sob a pedra as cúpulas humedecidas

Rompendo a penumbra a voz do ileso

A memória da circuncisão inextinguível


Treva

Quem resvala na treva da voz pelo inesperado

Vacila na palavra junto do círio a arder ilumina

O exausto corpo o fulgor da cegueira inconciliável


Tremor

Permaneço nessa desmesura

Dos sinais, perdido

Em chamas

Pelo teu corpo alucinado

A veemência do tremor

Certeza do incerto

Junto ao que subsiste

Com estranheza

A magnólia, a voz

Do esquivo corpo

O que se apossa

Na certeza do incerto

Incólume

Quem ilumina a lucidez do obscuro

Na demência das palavras o incólume

Permanece junto do inapreensível

Sob as abóbadas e os crisântemos

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Limpidez do obscuro

I
Entre os gerânios o rastro

Da luz no que vislumbras

A nuvem e a insensatez

II
A vicissitude das imagens

De outrora o campo arado

Das palavras anónimas

A limpidez do obscuro
Depressão, purgatório e “mobile phone”

Na arte actual torna-se relevante a questão da depressão. É absolutamente exacto, e a poesia e o discurso político-ideológico actual o confirmam, que estamos confrontados com a emergência – no sentido mais genérico - de um paradigma depressivo. Isto é em parte assim porque a depressão é um estado inscrito na experiência profunda do ser contemporâneo. O huis clos do isolamento e a ruptura da intersubjectividade comunicacional deve ser tomado num sentido amplo, designando a hegemonia das dis-funções e o registro de uma constelação psíquica da personalidade neurasténica e esquizofrénica. Só que hoje, muito simplesmente, já ninguém crê na cartilha “surrealista” da libertação do inconsciente por meio da escrita automática. Ficou para trás a própria validade das vanguardas, marcadas pelo niiilismo e a subversão, no momento quem que assiste ao triunfo da estética e da época da “vaporização da arte”. Mas por degraus quase imperceptíveis acabou por se afirmar, ou pelo menos, ou enunciar o tema da vulnerabilidade (o informe, o inumano, o patético e, portanto, a concepção da arte como excreção) ou, precisamente, da relação catastrófica - apocalíptica - com o tempo.

Debilitamento

Numerosos factores contribuem para a aceitabilidade do paradigma depressivo ligado à essência mesma do moderno. Já ninguém crê nas promessas de felicidade. Nada mais nos satisfaz. A democracia “estabelecida”, “instalada”, ou “mercantilista” europeia, após um século, vê-se de novo repleta de excluídos e de novos escravos. É bem paradoxal ver que as nossas sociedades ricas e livres parecem também incapazes de exercer duravelmente uma influência emancipadora sobre o resto do mundo e, assim, o programa do consenso liberal e democrático. A experiência posterior à queda do muro de Berlim e da dissolução da URSS, em particular a partir dos anos 80, fez-nos cépticos face aos programas sociais ou políticos. Após a derrocada da razão utópica em nome da razão científica – a capitulação do colectivismo burocrático, por um lado, – e com o “fim das grandes narrativas”, anunciado por Jean François Lyotard em 1979, isto é, o desenvolvimento da democracia burguesa e da globalização - o mercado global que nos conduziu à era “pós-nacionalista” que se identifica com a sociedade da abundância à medida dos produtos de consumo, por outro lado, - já nenhuma doutrina política parece possuir o privilégio da “salvação”. Daí o fenómeno da excitação febril e embriaguez ainda em bases do “individualismo possessivo”. A ordem jurídica ocidental - converteu-se em máquina que perpetua as injustiças. Os aparelhos ideológicos e políticos vigentes já nem sequer legitimam uma aposta social precisa tendo em vista objectivos igualitários. Sabemos que o debilitamento das ideologias, o paternalismo e a retórica que há muito são parte da aura do poder político, inevitavelmente levam ao fatalismo e resignação histórica.

Cultura yupie

Não é necessário fazer um resumo minucioso. Embora imperfeito, nosso esboço é suficiente para estabelecer que estamos em plena emergência dessa economia de “casino”, com toda a especulação financeira e a formação de capital fictício (boa parte sem o lastro de qualquer crescimento real) mas também de uma cultura yupie, no sentido estrito, com os seus atavios de pequena nobreza. Aqui é preciso acentuar – com vista a ulteriores reflexões - a predominância de uma retórica obsessiva da competitividade internacional entre nações como se fossem empresas. Podemos, pois dizer que assistimos ao “fim da história”, no sentido definitivo das ideias liberais na política (democracia liberal) e na economia (capitalismo globalizado)? É importante verificar que o controle democrático – territorial – fundado no princípio da soberania do povo e um desencantado elenco de arranjos institucionais e regras – torna-se cada vez mais impotente face às forças multinacionais e internacionais da globalização. Isto significa também numa nova fase a difusão do american way of life ou da macdonaldização do consumo.

Docta spes

Muito embora o mercado como instituição-chave, o homo-economicus como modelo humano, o interesse próprio como motivação principal da acção, o individualismo como configuração triunfante recebam a menção favorável das nossas sociedades, não devemos esquecer que, como bem sugeriu Charles Taylor, existem “bens-constitutivos” que fundamentam nossas crenças e nos ajudam a implementar nossas opções. Tais bens formam parte de marcos valorativos que se desenvolvem na história. Porque falamos hoje comumente da fragmentação, da indeterminação e da intensa desconfiança de todos os discursos universais – ou para usar um termo favorito “totalizantes” (que são o marco do pensamento pós-moderno)? O que expressamente caracteriza a rejeição das meta narrativas ou das interpretações teóricas de larga escala pretensamente de aplicação universal? Quando nos deparamos, igualmente, ante a crise do pensamento iluminista? No entanto podemos e devemos – começar por referir que esta viragem não reflecte nenhuma mudança fundamental da condição social (porque, na verdade, por detrás do visível consenso liberal alguns problemas centrados na exarcebação da insegurança e da instablidade encontram abrigo na ordem colectiva). Nesta era do capitalismo tardio talvez estejamos em condições de elaborar uma visão realista e dramática do homem (onde se enobrece a cidadania moderna e o republicanismo, a utopia animada por uma docta spes). Nestas condições, como deixar de voltar a uma meditação sobre o horizonte ético e utópico, sobre o sentido de uma ética da compaixão, da libertação, da alteridade?

Catástrofe social

As desordens esquizofrénicas, o pânico, a ansiedade, o abuso de fármacos, o alcoolismo e a bi-polaridade exacerbam-se. Existem demonstrações convincentes e tangíveis de que em nossos dias a depressão assume, portanto, o perfil das tumultosas desordens psíquicas – tendo em conta o impacto da catástrofe social – que caracteriza a nossa cultura tardo-industrial. A reflexão sobre as figuras do deprimido e do pobre parecem não ter lugar na racionalidade moderna: eles embaraçam o mundo científico-técnico e o modelo económio neoliberal vigente. Escusado será dizer que o discurso científico e tecnológico escamoteando a figura do deprimido - relativizando-o - postula a “racionalização” para reconhecer a justeza e a validez da cultura tecnopolitana (a mercantilização). O historiador americano Immanuel Walerstein assinala estarmos a viver um “tempo de purgatório” – depois da extinção do wilsonismo e do leninismo - , mas pondo em evidência um tempo recheado de inúmeros problemas e de frequentes lutas carregadas mais de desespero do que de confiança. Tudo se quer privatizar: a saúde, a educação, as empresas públicas, a própria política. Apela-se aos grandes princípios do neo-liberalismo: a liberdade da empresa, a iniciativa privada, a competitividade, a maior produtividade, a agressividade comercial e a melhor qualidade de serviço (para os que podem pagá-lo).

Do in-habitual às causas perdidas

Num tempo de aceleração e de mobilização acelerada da experiência - e em que o “mobile phone” passou a ser parte de uma ideia de família, de intimidade, emergência e trabalho - a desordem social parece adquirida. Esta a situação de que teremos forçosamente de partir. A decantação, aqui apenas esboçada, permite-nos ver até onde e como a poesia – enquanto intentum estético-ético que resiste à communis opinio - pode ainda ser testemunho do nosso saeculum. A palavra secular provém do termo latino saeculum, significando “esta idade presente”. Não se pode ignorar que a poesia - contrapondo-se à luz meridiana da disciplina tecnopolitana actual e da sabedoria convencional -, pesar de muita retórica em sentido contrário, sempre alinhou com as “causas perdidas”. E, em notável grau, o in-habitual. Evidentemente: podemos considerá-la sob o ângulo da lógica do terceiro-incluído. Ou ainda: do delirium e da dementia: a exaustão do discernimento dos actos cognitivos. Nunca nada foi tão incompreendido como o seu ambitus desorganizador. A sua ordem é a ordem do avesso. Uma vez que caminha de encontro à imagin/nação. A Via Láctea. O inesperado. O que nos interpela in venire…

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Ninfa do insone

Oh, ermitã, hera, ninfa do insone

Hidra do tumulto, espectro venerando

Oh, êxtase do infinito na noite muda

Virgem do anónimo, astro fecundante

Junto de quem dorme amotinado

És sibila e eva trans lúcida

Por saturno ermitã da insônia

Lésbia de catulo e dafne sonânbula
Do “amor-paixão” e da poesia

Tudo conspira, hoje em dia, para mascarar a verdadeira natureza do “amor-paixão”. A tradição platónica do “Fedro” segundo a qual se torna necessário transpôr o amor dos belos corpos às das belas almas, o amor das belas almas à do bem supremo que não tem forma; o tema salomónico do amor humano, por causa da concepção do primeiro casal no “Génesis”; a história de Tristão e Isolda, do amor cortês (amante-cavaleiro e a sua dama ou domina) que opõe uma fidelidade independente do casamento legal, baseada no amor-único, esse mise-en-abîme, levam a pensar que o culto da paixão é talvez um dos exemplos que caracterizam a concepção do amor depois de séculos. Ninguém contestará que o “amor-paixão”, encarado como signo do impossível por Lacan, passou a ter uma significação transgressiva, libertária, libidinal. Parece-nos bastante evidente que a experiência do “amor-paixão” - situando-se para além da moralidade e legalidade - dita por si só a linguagem obscura do poesia. A poesia parece exigir, pelo menos explicitamente, uma assinatura-mundo a partir de Eros, as profundezas do demoníaco, onde a religião e o erotismo encontram as suas raízes mais secretas. A paixão – interdita, o amor inconfessável - , nunca deixou de confrontar-se com o indizível ou os chamados constrangimentos convencionais (os próprios “poderes”). E acaso será o amor (im)possível?

Dor, (des)possessão

Para se explicar o amor é preciso ir além do amor. Fausto exprime a decomposição do amor. Stendhal, Proust, Freud e Sartre exorcizaram a existência do outro: o amor na sua essência é um fenómeno solitário. Escusado será dizer que, segundo Kiergegaard, o casamento é o maior inimigo do amor: comporta o risco da repetição e do hábito. O amor feliz – enquanto reencontro e conversão recíproca – tal como foi formulado por Denis de Rougemont em seu livro clássico “O Amor e o Ocidente” – não tem história na literatura ocidental. Aqui deparamos com o grande achado dos poetas da Europa: a obsessão de conhecer através da dor. A noção doentia do amor recíproco infeliz – desafortunado – está, de alguma forma, presente em Pedro, o Cru, e Inês de Castro. É a história desse desejo de fusão mística que se opõe ao instinto de possessão. Viver, ser um indivíduo, não se define por um acto de apropriação. Sugere-se que o amor situa o ser amado na esfera do absoluto.

Insanus, demens

Podemos inclusive partir dos mecanismos do desejo que nos leva a concentrar a nossa atenção na mística e no erotismo que têm obscuras afinidades com o trágico e a morte. A catarse trágica, o êxtasse místico e o orgasmo erótico representam estados de espírito estreitamente aparentados. No entanto, pode-se constatar, que o amor cegante, ressacralizado e livre, – enquanto promesse de bonheur – não mudou no nosso contexto tardo-moderno. Não podemos, precisar, de início, o que seja a loucura amorosa sem nos sujeitarmos a cair num “círculo vicioso”. Quem é o insanus, demens? Demócrito e Platão afirmavam que ninguém seria bom poeta sem o sopro da loucura (ekstasis). O termo ekstasis significa “saída de si próprio”. A poesia supõe a inspiração, uma inspiração do poeta por uma força divina – Musa ou Apolo – ou um “fora de si”. Não tem o poeta a veleidade de se expressar através do amor? A poesia tende para um caos-cosmos enquanto tal: a nova língua. Não procura o poeta pensar contra a tradição, o consagrado e o já visto, o convencional?

Interfaces

Tudo conspira, hoje em dia, para mascarar a verdadeira natureza da poesia. Em tempos de “derrota do pensamento” (Alain Finfielkraut) é necessário, constatar, com efeito, a predominância da “estética da comunicação”. Pressupõe, bem entendido, a di - con - ssonância, a viagem, a contaminação e de, facto, as bifurcações por “interfaces”, os “vasos comunicantes”.
Poderíamos falar de um eventual “fim do período da arte” perfilhado por Hegel, quando, a partir da II Guera Mundial, surge um novo campo de pesquisa, a cibernética (kinernein= governo)? Ou de uma nova arte des-territoralizante por excelência, atentando hoje especificamente às tecnologias interactivas que nos colocam diante do pós-humano? Podíamos partir daqui para reflectirmos sobre a emergência da tecno-arte quando se insiste no carácter tumultuário – não adaptativo do poeta – que, frequentemente, se confronta com a ordem racional e monológica. Ou melhor: a opacidade, a (i)legibilidade, os afluentes desviantes. A poesia também significa pactuar com uma certa condição de exílio (o poeta não tem identidade: associa-se ao trauma, o evento ou o que falta). Poderíamos falar da psicose, da pulsão, da simbolização, da terapêutica da escrita poética? Da “loucura da linguagem” que, frequentemente, expressa o inexprimível? Justifica-se o prefixo trans quando falámos de poesia? O transe e o a-lógico? A cegueira e o tumulto? Poder-se-á dizer, com Horderlin, que “os poetas criam o permanente”. Ainda que pudesse parecer desejável, o permanente não consiste no invariável, o idêntico ao longo do tempo ou no que persiste em contínua presença. Poder-se-á assimilar a poesia ao inesperado, ao incontido, a algo convincente? Quem se dispõe à pronunciação que não cessa? Ao diálogo exigente? Como dizer algo “desenfeitiçando” a linguagem? Contrariando o óbvio, o pré-formado? O cárcere do tempo e da história, inultrapassável? Poderemos dialogar entre temporalidade e eternidade? Amorosamente?

domingo, 20 de setembro de 2009

O INOMINADO

- Quem se ajusta ao interminável - o inominado -
Nesse dizer do explícito - permanece na escuta -
Quem renuncia ao oblíquo - sobre a luz desavinda -
Num só momento retoma de vez o simulacro -
Da pintura - a intangibilidade da obra - o desmedido -
Quem se consome no penoso - como um possesso -
Reivindica o caos - a prosperidade do visível -
Quem perpetua a cada passo a escassez -
Da linguagem - na tela - carregada de sinais -
Sucumbe ao excessivo - a voz da constância –

sábado, 19 de setembro de 2009

Le soleil dans le sommeil



Je vois du ciel – trop beau – le soleil devant mon sommeil- jusqu’a perde la raison – ses yeux – dans l’azur

Ton sommeil se pressent – faisait face au soleil – allait de tous parts cerner le mien

Se voile la face belle – doucement – tu resplendiras

Suis-moi – dans la folle mélodie – la passion – insondable – la rumeur des anges

Comment fixer - le plaisir – partager les mots assidus – aux confins du corp – le feu – dans la nuit

Si lentement ton regard – Qui va allumer ma lampe – et la respiration – le secret du jour en feu

Je veux atteindre – des murmures de l’eau – ce ciel – d’une voix – sensuelle – passionne

Qui cède aux chemins de la solitude – de l’aventure – attendre la musique du silence – le rythme du coeur?

Je contemple ses yeux avides – Qui me demandent mon secret qui t’appartient – halo d’or – insondable?

Que mes yeux vont plus loin – eclatant proximité de l’invisible – tu deviens secret – transmutes ma fureur

Révèles-toi – tu te rencontreras – dedans – subconsciemment

L’écho débordant – des heures insatisfaites – reve – d’une nymphe qui dormait dans le fond de la mer

Dans cette torpeur j’attends – le murmure magique – sa voix – à travers mes rêves

Laisse m’ennivrer du simple éclat – des yeux – le coeur veut s’illuminé – cette nuit

Je restais sans voix – consumée dans l’infini – puisses-vous ouvrir mes yeux d’adolescent – je demeure des nuits a t’esperer

Ta voix – jadis – troublait mon sang – avec des tentations aventureuses

Les couleurs d'eau



Les couleurs d’eau contiennent nos larmes – le désir – ce qui s’etonne de la mer

La couleur d’eau c’est comme la pluie qui nous traverse – encore à naître

Laisses-toi guider par la couleur sauvage – la plus indicible au point d’eau

Q’il soit ainsi ou presque – si lourd de ton – couleurs sans termes – couleurs d’eau – sans cesse

Le flux des couleurs – la profusion du feu – Qui te traverse – des eaux

Ta voix douce – c’est un parfum suave – qui s’ouvrait à moi

Je viens te dire le ciel bleu – vibrant – la splendeur inattendue – la voix au silence – revenue

Que je te vois sous le ciel chaud – touchant l’incendie – l’innatendue – ma bouche

La couleur d’eau reste – les larmes amères – est ce qui revient à celle dans la douleur

Aimes-moi – toute couleur – la voix – de la musique imminente

C’est ce que je veux c’est – ton coeur – à travers – le sommeil – plein

Une joie souterraine – de nuit complice – nue

De sentir ici – bas l’ange – le timbre – la voix qui arrive ou part – toi – les mots profonds en or

Sauvagement – toutes les couleurs – joies devenus traces

Tu transmues par la couleur la vie dans la vie

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Incêndio do corpo

I
Quem se aparta da memória
Na noite do esparso
A justeza do obscuro
Ilumina o que subsiste
Irreparável - incongruente - ?


II
Quem ignora o funesto
Retoma o dizer do incontido
O que se dissipa obscuro
No incêndio do corpo
Permanece inalterá...vel


III
A insistência da pedra
Sob o insaciável
O que incandesce

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Ténue Fala

Fico horas e horas a escutar
A ténue fala dos dias pressentidos
Vou deslizando pelo silêncio unânime
Estranha e doce noite a pedra inesgotável
Junto ao que incendeia que beleza acena?
Quem ilumina minha voz insaciada?
Quem se detém pelo in...apreensível?
Junto da avidez clama por presença
Perpetua a memória do incomparável?

Falésia



Entre as tendas da praia - junto à falésia - no rasto da luz prateada – recorro à memória. Que se me evoca o pátio: a árvore do júbilo. Vêem-me à tona as imagens da porta entre-aberta. Ante o atelier de cézane - vislumbrei os quadros - o chão de lages escurecido – e as tuas pálpebras escurecidas. Anos mais tarde regressei à velha torre - de pedra e cal. E ao longo da duna – vi o acaso rubro sobre o mar verde e os relâmpagos reflectidos. Da próxima vez, demorar-me-ei. Dir-te-ei a cláusula celeste. O que se repercute na voz em meio às naves.

Reconstrução


Vibrante

Sobre o candelabro as naves
Do incêndio onde vislumbro
O ouro, a cegueira
Do despropósito
A luz extenuada
De setembro

Ardor

Passaram tantos anos
O respeito parece um bem escasso
Aqui estás tú exilado e eu não soube
Que à vida juntavas o ardor
A liberdade do que mais importa
Alinhado entre estranhos
Sou eu que te acompanho agora
Quando voltas?