segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Do “amor-paixão” e da poesia

Tudo conspira, hoje em dia, para mascarar a verdadeira natureza do “amor-paixão”. A tradição platónica do “Fedro” segundo a qual se torna necessário transpôr o amor dos belos corpos às das belas almas, o amor das belas almas à do bem supremo que não tem forma; o tema salomónico do amor humano, por causa da concepção do primeiro casal no “Génesis”; a história de Tristão e Isolda, do amor cortês (amante-cavaleiro e a sua dama ou domina) que opõe uma fidelidade independente do casamento legal, baseada no amor-único, esse mise-en-abîme, levam a pensar que o culto da paixão é talvez um dos exemplos que caracterizam a concepção do amor depois de séculos. Ninguém contestará que o “amor-paixão”, encarado como signo do impossível por Lacan, passou a ter uma significação transgressiva, libertária, libidinal. Parece-nos bastante evidente que a experiência do “amor-paixão” - situando-se para além da moralidade e legalidade - dita por si só a linguagem obscura do poesia. A poesia parece exigir, pelo menos explicitamente, uma assinatura-mundo a partir de Eros, as profundezas do demoníaco, onde a religião e o erotismo encontram as suas raízes mais secretas. A paixão – interdita, o amor inconfessável - , nunca deixou de confrontar-se com o indizível ou os chamados constrangimentos convencionais (os próprios “poderes”). E acaso será o amor (im)possível?

Dor, (des)possessão

Para se explicar o amor é preciso ir além do amor. Fausto exprime a decomposição do amor. Stendhal, Proust, Freud e Sartre exorcizaram a existência do outro: o amor na sua essência é um fenómeno solitário. Escusado será dizer que, segundo Kiergegaard, o casamento é o maior inimigo do amor: comporta o risco da repetição e do hábito. O amor feliz – enquanto reencontro e conversão recíproca – tal como foi formulado por Denis de Rougemont em seu livro clássico “O Amor e o Ocidente” – não tem história na literatura ocidental. Aqui deparamos com o grande achado dos poetas da Europa: a obsessão de conhecer através da dor. A noção doentia do amor recíproco infeliz – desafortunado – está, de alguma forma, presente em Pedro, o Cru, e Inês de Castro. É a história desse desejo de fusão mística que se opõe ao instinto de possessão. Viver, ser um indivíduo, não se define por um acto de apropriação. Sugere-se que o amor situa o ser amado na esfera do absoluto.

Insanus, demens

Podemos inclusive partir dos mecanismos do desejo que nos leva a concentrar a nossa atenção na mística e no erotismo que têm obscuras afinidades com o trágico e a morte. A catarse trágica, o êxtasse místico e o orgasmo erótico representam estados de espírito estreitamente aparentados. No entanto, pode-se constatar, que o amor cegante, ressacralizado e livre, – enquanto promesse de bonheur – não mudou no nosso contexto tardo-moderno. Não podemos, precisar, de início, o que seja a loucura amorosa sem nos sujeitarmos a cair num “círculo vicioso”. Quem é o insanus, demens? Demócrito e Platão afirmavam que ninguém seria bom poeta sem o sopro da loucura (ekstasis). O termo ekstasis significa “saída de si próprio”. A poesia supõe a inspiração, uma inspiração do poeta por uma força divina – Musa ou Apolo – ou um “fora de si”. Não tem o poeta a veleidade de se expressar através do amor? A poesia tende para um caos-cosmos enquanto tal: a nova língua. Não procura o poeta pensar contra a tradição, o consagrado e o já visto, o convencional?

Interfaces

Tudo conspira, hoje em dia, para mascarar a verdadeira natureza da poesia. Em tempos de “derrota do pensamento” (Alain Finfielkraut) é necessário, constatar, com efeito, a predominância da “estética da comunicação”. Pressupõe, bem entendido, a di - con - ssonância, a viagem, a contaminação e de, facto, as bifurcações por “interfaces”, os “vasos comunicantes”.
Poderíamos falar de um eventual “fim do período da arte” perfilhado por Hegel, quando, a partir da II Guera Mundial, surge um novo campo de pesquisa, a cibernética (kinernein= governo)? Ou de uma nova arte des-territoralizante por excelência, atentando hoje especificamente às tecnologias interactivas que nos colocam diante do pós-humano? Podíamos partir daqui para reflectirmos sobre a emergência da tecno-arte quando se insiste no carácter tumultuário – não adaptativo do poeta – que, frequentemente, se confronta com a ordem racional e monológica. Ou melhor: a opacidade, a (i)legibilidade, os afluentes desviantes. A poesia também significa pactuar com uma certa condição de exílio (o poeta não tem identidade: associa-se ao trauma, o evento ou o que falta). Poderíamos falar da psicose, da pulsão, da simbolização, da terapêutica da escrita poética? Da “loucura da linguagem” que, frequentemente, expressa o inexprimível? Justifica-se o prefixo trans quando falámos de poesia? O transe e o a-lógico? A cegueira e o tumulto? Poder-se-á dizer, com Horderlin, que “os poetas criam o permanente”. Ainda que pudesse parecer desejável, o permanente não consiste no invariável, o idêntico ao longo do tempo ou no que persiste em contínua presença. Poder-se-á assimilar a poesia ao inesperado, ao incontido, a algo convincente? Quem se dispõe à pronunciação que não cessa? Ao diálogo exigente? Como dizer algo “desenfeitiçando” a linguagem? Contrariando o óbvio, o pré-formado? O cárcere do tempo e da história, inultrapassável? Poderemos dialogar entre temporalidade e eternidade? Amorosamente?

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