segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

VELIS NOLIS

seguimos sendo um instrumento de algo

A pateticidade colectiva universal que é a situação na qual vivemos - em que seguimos sendo instrumento de algo - é certamente a projecção de uma lógica de administração do tempo que se converteu numa forma moderna de expectativa da salvação. Assiste-se frequentemente à perda da relevância das instituições e dos padrões interpretativos religiosos. Outra ainda é a transformação ou reforma de conteúdos teológicos em seculares. Aí encontra Hans Blumenberg a auto-afirmação humana que constituiu a característica mais significativa do nosso tempo. A idade moderna é, no entender deste filósofo e historiador, a superação da gnose. É o começo da positivização do mundo. Assim, por exemplo, na moderna teoria do conhecimento, que aspira à certeza teórica, se vê uma secularização do problema básico cristão da segurança da salvação. Fica evidente a partir do exposto acima que todas as teorias modernas da transformação e da revolução, da subversão e do terror, são um resto secularizado da ideia originária cristã de progresso. “O horizonte histórico – diz ainda Hans Blumenberg - perdeu ante os nossos olhos o objectivo transcendente – o reino dos céus – de uma história salvífica. A transcendência debilita-se enquanto que a imanência fortalece-se”.


Auto-afirmação

Hans Blumenberg tenta mostrar que no moderno “ethos” do trabalho se descobre a secularização da santidade e também das suas formas correspondentes de ascese. O próprio postulado da igualdade política de todos os cidadãos surge como secularização do conceito de igualdade de todos os homens perante Deus. Ora pois: podemos inferir, pelo menos, que a ideia de progresso se vê – ainda segundo o historiador e filósofo alemão - degradada à condição de “secularizado” da concepção de uma história de salvação providencialmente estabelecida. É apesar de tudo a força motriz e base de uma moderna vontade de auto-afirmação, surgida por causa do absolutismo teológico medieval e do desenvolvimento moderno da política, da ciência e da técnica. Nós “modernos” passamos à concepção de uma vida realizada que já não supõe uma “vida superior”. Frequentemente a promessa eudemonista da aceleração moderna pode ser vista como o equivalente funcional das ideias religiosas de “eternidade” ou “vida eterna”, e a aceleração do ritmo da vida representa, em sentido lato, a grande resposta moderna face ao problema da finitude e da morte.

“Mobilidade acelerada”

Não se meditou o suficiente sobre a modernidade enquanto complexo tecnopolítico. Trata-se de apreender a realidade cinética da modernidade que - na gíria de Peter Sloderjik - nos fez gravitar numa “mobilidade acelerada”. É esta uma denominação de origem marciana e, em certa medida, sobrecarregada de ideais bélicos. Chega o momento em que a mobilização se traduz na chamada ascensão diabólica. Mais ainda: dentro de determinados limites, os passos do progresso (na versão da modernidade) geraram, pelo menos, novas formas de opressão e miséria. Parece que nos encontramos neste ponto. Tanto mais que, apesar de tudo, “a defesa da permanente inovação é, simultaneamente, herança e dogma da modernidade” (Mobilização Copernicana e desarmamento Ptolomaico - Ensaio Estético, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1992). Devemos acrescentar que a mobilização de massa tornou-se mais evidente que no passado: tomemos o ser-para-o-movimento. O sinal óbvio desta mobilidade é, em particular, o automóvel: ele tornou-se por toda a parte o centro cultual da religião universal cinética. Faz-se necessário insistir em afirmar, entretanto, que a aventura humana move-se em direcção ao monstruoso global. “Autonomia e desespero – diz ainda Peter Sloderjik – se tornam sinônimos”.

(Ciber)mundo

Neste contexto gostaria de começar por me referir à questão da sociedade de consumo (donde já não há possibilidade de um discurso significativo) Não se trata apenas do reconhecimento dessa atmosfera geral de economia de casino – mas ainda assim da “world” cultura, a cultura global. As manifestações neo, trans, pós são mais discretas, mas afirmam-se mais em cada dia. A verdadeira vida (desregrada no sentido rimbaudiano) passou a ser necessariamente o videojogo. O problema está posto: a prevalência da manipulação e da amálgama dá o carácter principal à actual fase do (ciber)mundo. O que é novo é, antes de mais, a dificuldade ou resistência de se aceitar o “não-visualizável”. Tudo é agora visualizado. As nossas dificuldades vêm sempre da superabundância das imagens: quando o ver avança, o pensar recua - alternadamente. Há uma disseminação infindável de imagens que – repetimos - destronam a palavra (enquanto oferta de salvação).

Sensibilidade vicária

Como podemos ultrapassar esta primazia da imagem – no que respeita à prevalência do visível sobre o inteligível – que frequentemente nos leva a um ver sem compreender? Talvez o mundo multimediático em seu presente não seja apenas aquele divisado por Giovanni Sartori – como pressupomos - simplesmente bloqueado naquele ponto em que o ver está a atrofiar o compreender (Homo Videns, Televisão e Pós-Pensamento, Terramar, Lisboa, 2000, p. 43). Estamos entrando agora, por impotência ou vileza, em uma era da sub-informação e a des-informação (assente na produção de pseudo-acontecimentos). E no tempo das redes – da comunicação frequentemente heterodigida – onde não podemos renunciar ao amâgo de uma “lógica circular”- já sem qualquer centro - as amarras do trivial e do insignificante. Verdadeiramente o aumento da credulidade e da supertição é suficientemente revelador para não termos de temer essa constatação hoje evidente: a idade do pós-pensamento. Como explicar, por exemplo, que a sensibilidade vicária - viver através da experiência alheia - seja um traço fundamental da nossa cultura? Sucede mesmo que os nossos impulsos fragmentários e caleidoscópios despontam numa atitude blasé.

Imperativo dromológico

Admite-se, por posição de princípio, que a nossa sensibilidade é formada pela exposição urbana (embora inclua simultaneamente aspectos vários). Mas como entendê-la? George Simmel descreve o nosso estilo de vida urbanizado abordando, contudo, as formas das diferentes culturas do tempo que coexistem dentro das modernas sociedades avançadas. A aceleração é, em certa medida, o movimento temporal predominante hoje em dia, mas não é o único. Efectivamente, a aceleração está omnipresente nos mundos do trabalho e do consumo, mas também está no mundo da vida quotidiana, projectando em todos eles o seu imperativo dromológico (seguindo a noção retirada de Paul Virillio).

Globalização

Não há margem para dúvidas de que o corrector da bolsa é o seu protótipo: tentar fazer o máximo de coisas possíveis no menos tempo possível, andar mais rápido, acostumar-se ao incremento sem fim da velocidade do ritmo da vida social. O “fast-food” - e, ainda dentro do mesmo registo, as “parties”- parecem, então, revelar um estilo alimentar de vida acelerado. Com a centralidade da globalização (global players) assiste-se à des- localização do capitalismo multinacional e seus fenómenos correlatos: a violência estrutural ou a violência da injustiça. Por um estranho paradoxo, as maiores velocidades sempre estiveram associadas aos estratos mais ricos da sociedade. Riqueza e a velocidade têm um efeito colateral: a exclusão. A doença de hoje é a insegurança, que é um outro nome do medo. Sabemos que uma parte crescente da população activa experimenta mesmo a obrigação do tempo livre como desempregado ou como reformado antecipadamente.

(Sub)cultura

O ponto importante que desejo enfatizar aqui é que existe um mundo do (pré)constituído que quase nos identifica com uma sensação sem precedentes de responsabilidade pessoal e impotência individual. Foi-se assim generalizando a aceitação de um certo mal-estar - no liame de um século desgastado pela ascensão e queda das ideologias tradicionais - logo revelado por uma (sub)cultura dominada pela simulação e a hiper realidade. É portanto legítimo acentuar que nos quedamos num mundo de imagens e de simulacro puro. Depois disto, como nos havemos de admirar que o vídeo tenha substituído o diário pessoal?

“Simultaneous happening”

Devemos agora reconhecer que as nossas sociedades surgem associadas à dramatização do poder e do acontecimento e, por que não dizê-lo, a um excesso de informação e de comunicação. Poderíamos designar este estado como de “simultaneous happening”. É certo que, em sentido rigoroso, o poder tornou-se publicitário; e isso não é coincidência. Discutem-se, assim, as técnicas do audiovisual de que o poder dispõe. Ninguém escapa à chamada dramaturgia democrática: a propaganda (na sua articulação com uma linguagem padronizada e homogeneizadora). Nestas circunstâncias a exasperação do espectacular pela irrupção da imagem – garantido por um mundo televisionado - tornou-se uma evidência. Um exemplo entre outro desta contaminação temo-lo na subordinação efectiva, decisiva e absoluta do indivíduo metropolitano ao espaço gerado pelas telecomunicações - com e pela instantaneidade e ubiquidade.

Subtom melancólico

Dir-se-á que o subtom melancólico que nós hoje conhecemos é feito de uma multiplicidade de posições-sujeito. Já falámos da psicanestia, da compulsão obsessiva, da desconexão entre o corpo e a mente, da emersão na velocidade (originado da cibernética), da rearticulação do verbal pelo visual nas nossas sociedades (MEGALÓPIS). Assiste-se no seu conjunto em concreto à generalização da teatralização (mediática). O próprio eclodir de uma estética da embriaguez nos induz a uma forma de anestesia (que conduziu ao declínio da consciência crítica). Uma reflexão sobre a crescente importância e influência das identidades culturais híbridas ou desterritorializadas deve comportar, ao lado do que diz respeito à fragmentação e a alienação da subjectividade, um exame do colapso das maneiras convencionais de formação de significado. Assiste-se, sem dúvida, a uma circulação e revalorização do “kitsch”: nele convergem a reclicagem (ir)reverente, o gosto pela iconografia e pelo artificial, o melodrama e a super determinação. Mas tudo isso não serve senão para confirmar uma sociedade que se converteu em espectáculo (Guy Debord). Divisamos de facto uma ruptura da ordem sistémica que é uma passagem para a afirmação da desilusão com as narrativas mestras da modernidade. O ponto central está no facto de que a referência humana à realidade (se aceitarmos a sugestão de Hans Blumenberg) é indirecta, árdua, retardada, selectiva e, acima de tudo, metafórica.

Sem comentários:

Enviar um comentário