terça-feira, 13 de outubro de 2009

UMA ENCENADORA DE SI MESMO: DEBORAH NOFRET

Bricolage(s)

Depois de em 2006 ter exposto as suas obras em Lisboa, sob o título de Arritmias, Deborah Nofret leva agora ao Porto "Preferências Prestadas". Esta mostra pode, muito propriamente, ser considerada o resultado de vário decênios de experimentação e que consiste, por sua vez, em uma espécie de (re)consideração das tecnologias digitais (onde perpassa um modelo, muito abrangente, de arte como “constructo”). Estamos fora do alcance instância da(s) autorferência(s) identificatória(s) e da auto-representação - a chamada matriz narcísica-desconstrucionista, de um eu fracionado ou pulverizado, virtualmente invisível - , que, por si mesmo, pode ser tomada como ponto revelador da sua arte. Estamos assim no limite de uma ambivalência original que, contando prática e exclusivamente com os recursos das artes mais ou menos áureas, - o “suporte” fotográfico e/ou pictórico – guarda uma nuance de poeticidade. É isso que constitui a sua autenticidade.

Speculum

Sucede, por vezes, que os criadores – e eu aqui só me refiro, já se vê, às suas “démarches” aparentemente dispersas - , ganham consciência das suas obsessões – as feridas do simbólico, mais que feridas simbólicas –, e da unidade dos seus temas – aleatória e ecleticamente, fragmentando a coesão e a continuidade tão queridas da arte elevada -, surpreendidos por se verem tão iguais no diferente. Podemos hoje falar da obra arte (a escrita contemporânea) enquanto cifra, revelação, speculum, bricolage? Enquanto corolário do que é manifestus - algo que o homem produz com sentido expresso – e, em última análise, excessus?

Beleza?

Existe, pois dissemo-lo, um modo de ser específico: a obra de arte, onde se patenteia a beleza de um tempo não-reconciliado? Como avaliar o (des) acerto, a (in) consistência, a rasura, o resíduo in/decifrável das configurações criadoras, das diferentes versões da arte, os seus traços intempestivos e o seu rastro (e)scritural ? Algumas vezes mesmo, torna-se difícil avaliar os limites que separam os planos ou “níveis” da arte, tanto mais, que a par da identidade reencontrada, é preciso ter em conta a multiplicidade aberta numa obra. Será que a afirmação de Max Bense em “Aesthetica” de que a beleza é, pois, aquilo no qual a obra de arte supera, transcende, a realidade, é verdadeira? Contra este ponto de vista pode, todavia, objectar-se o que se segue: ainda que se dê relevo à noção, por motivos óbvios, de produção e percepção da beleza, não se deve deixar de reconhecer, como quer Marc Jimenez, que a arte contemporânea nasce efectivamente sobre um terreno preparado de longa data pela desagregação de sistemas de referência, tais como a imitação, a fidelidade à natureza, a ideia de beleza, harmonia, etc., e pela dissolução dos critérios clássicos (La querelle de l`art contemporain, Paris, 2005).

Resist/diver/(g)ência

“É o prefixo pós, dizia U. Bech, a palavra-chave do nosso tempo”. Tudo é pós”. Mas até nesta visão extrema persiste ainda algo performativo que proclamamos, pois o criador como ser da resistência ou, mais exactamente, da divergência, rompe habitualmente com os interditos e, dentro da arte, tudo é permitido. Talvez não tenhamos sempre o sentimento vivo que nos permita a formação de novas maneiras de significar. É certo que, de alguma maneira, ao nível das práticas artísticas, nos encerramos numa amálgama de tradições diferentes (e muitas vezes inconsistentes entre si) que beiram a incompatibilidade. Nada tem de estranho que, num mundo “tecnopolita”, reine a mais ampla tolerância em relação a todas as formas de arte e todos os estilos sem distinção, que entram – como Jean Braudillard chegou a dizer - no campo estético da simulação.

Do (im)previsto

Viver com a própria repetição é aceitá-la, mas é também tê-la em consideração. De resto e a despeito das aparências contrárias, as repetições na arte e na escrita não são nunca estéreis. O trabalho criador – onde ser é habitualmente fazer – expõe-se a mil encontros dos quais a maior parte são (im)previstos. Temos de prepara-nos para o (im)previsto. Dá-se o caso que tudo é virtual, no sentido em que hoje se emprega este termo, porque habitamos, concretamente, um universo inteiramente formado por imagens. O mundo virtual é, para usar a terminologia de Gilles Deleuze, um universo de efectividade-imagem. Porque é nisso que é preciso insistir: a tecnologia tomou a dianteira. Será que a tecno-ciência está preparando aquela catástrofe do humano que Heidegger chamou a atenção (seguido de perto por Jacques Ellul, Baudillard e Virillio)? É sabido até que o monstruoso criado pelo homem tornou-se manifesto: o monstruoso no espaço criado pelo homem, como monstruoso o tempo criado pelo homem e ainda como o monstruoso nas coisas criadas pelo homem. “A lei da modernidade, sobre este ângulo é, segundo Peter Sloderdijk, o crescente “engagement” de artificialidade em todas as dimensões essenciais da existência” (L’Heure du cime et le temps de l’oueuvre d’art, Calmann-Lévy, Paris, 2000, p. 29)

Hibridações

Pode dizer-se, de maneira geral, que assistimos à (est)ética da) desaparição das fronteiras entre as artes. A adopção do cruzamento e das hibridações das práticas e os materiais - sob todas as formas, como na sua diversidade e antagonismo, - aparecem, no fundo, como recorrentes. Será que os criadores se tornam coagidos, por fidelidade ao sentido que buscam a procurar o vasto domínio das inovações, experimentações, das correspondências inéditas e das polivalências - na demanda de um nova (in)coerência? Deve, pois, examinar-se o caso das referências ao passado, citações, imitações, miscelânea de estilos e o ecletismo. Damos por suposto, claro está, que nem sempre o frenesi do novum e a chamada fé na possibilidade da arte rompem com os cânones académicos e os valores artísticos tradicionais.

Internautas e náufragos

De que modo reconfigurar e redefinir o novum (tomando por base o já constituído a que se reporta)? Poderemos aludir ao terreno de um “eu saturado” de “fracturas” e de “malogros”? Na verificabilidade ou confirmabilidade de uma paisagem repleta de internautas e de náufragos? Se existe um assunto ex(im)plosivo é o das relações entre a tecnologia e a arte, Deborah Nofret documenta essa preoupação, muito expressivamente, em sua obra. O seu carácter inusitado tem o mérito de chamar a atenção para os avatares tecno-digitais propícios a criações inéditas. Vem de longe este seu “engagement” - na via da emergente cultural digital - com o grande organismo que circula nos vasos comunicantes das redes. Ela parece mostrar-nos que a arte não é mais uma questão de definição mas de realização. O seu fazer poiético intervém aqui apenas como inverso do cliché fotográfico (quadrícula) ou da pintura a óleo (tela); intervém por detrás da multimédia, a sociedade-rede, a troca informática, a promessa virtual (de uma espessura de sentido em novos registros).

“Montages-cut”

Dissociando-se, no plano criativo, da encenação de si mesma – a encenação da verdade – que é o próprio acto de sair de si própria, Debora Nofret retoma, ainda que com outra densidade, a criatividade originada da pesquisa (tomando a lógica ou a resposta-meditativa de uma “deriva”). É necessário determo-nos sobre a base experimental e interactiva dos seus quadros (sequências-narrativas)? Todos os entrelaçamentos e as conexões que caracterizam a sua obra remetem-nos para imagens sintéticas ou sínteses de imagens. Nas suas peças - montages-cut” ou bricolage(s)- alcançamos familiaridade com um trajecto de arte que corre o risco de desaparecer por detrás da multimédia. De referir que o conceito de bricolage de Lévi-Strauss foi retomado por Jacques Derrida, em “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, mas para esboroar a dicotomia entre o bricoleur como improvisador e o engenheiro como o que patrocina um tipo de conhecimento que privilegia a sistematização e o método. Todo o discurso, traduzindo em termos simples e acessíveis, na linguagem derridiana, é bricoleur” e “o próprio engenheiro ou sábio são também espécies de bricoleur”. Cf. Derrida, Jacques. A escritura e a diferença, p. 238-239.

Porto, 29 de Setembro 2007

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