quarta-feira, 21 de março de 2012

SAGESSE, SABER E SABOR

- ESCRITURA E DISCURSO EM FÁTIMA VALE E BRUNO MIGUEL RESENDE

Sagesse, saber e sabor são três palavras com a mesma raiz, provenientes do latim sapere, que significa ter o gosto (ou o perfume). Elas revelam-nos o caminho que Fátima Vale e Bruno Miguel Resende escolheram indicando talvez os tópicos de uma “escrita-gozo” onde se retoma o apego trans-versal ou neo-maneirista (nas exigências de l`artífice) - a vocação visionária. Falada ou escrita, a língua precisa de “prazer”, do jogo de palavras, da “alegria” do texto. Não podemos, no entanto, deixar-nos seduzir pelo poder criador da abstracção ou pela magia da palavra. Porque, a crer em Martin Heidegger, “o que se enuncia por palavra nunca é, em nenhuma língua, o que se diz” (Questions III, pág. 35)

topologia oracular

A complementaridade entre as poéticas de Fátima Vale e Bruno Miguel Resende é agora mais patente. Em ambos, a primazia da língua - o impossível que lhe é próprio - a confontração com a melancolia. Reencontramos aqui as conexões ou os registros híbridos - xamanísticos ou mágicos - a philia dos filósofos - o preciosismo e o rebuscamento verbal . São duas modalidades - sujeitos-de-enunciação - escritas - que, à primeira vista, não procuram objectivos comunicativos. Os seus textos - no intervalo entre a Patafísica de Jarry e a estética do duende e do aduendado de Garcia Lorca - surgem-nos ancoradas na “alquimia” e na “imaginação activa” e, por conseguinte, nos avatares da (com) pulsão erótica. Parte-se do intentio des-construtor (na emergência da topologia oracular), das narrativas-moldura, do eros cognoscitivo.

escrita depurada - uterina

Em “´Spabilanto” (Incomunidade, 2012) de Fátima Vale enraíza-se uma poética da catarse e da doação (sob o influxo das iluminações). Trata-se de uma uma escrita depurada - uterina - onde se increve (de forma directa, imediata) o affectivus (o transbordamento pulsional). Poderíamos falar de uma poesia orante cuja lógica é a da re-afirmação do metamórfico e do epifânico. É necessário ter em conta o stylo original de confluência simbólica e linguística bilingue (entre o português e o mirandês), Trata-se, pois, de um poemário miscellanea do erótico e do festivus, da defesa do maravilhoso, do inusitado ou “primordial”.

códigos da origem

A estética de Fátima Vale remete-nos ao “teatro” do (cosmos) texto: ”os códigos da origem” (pág. 24). Este conjunto de 18 textos - exercícios da escrita - sob a fluidez do sensível - concedem ao imitatio “imitação”, por sua sinonímia com “cópia”, quanto seu correspondente grego, mímesis, a sua importância primordial. Refira-se: “mimesis da memória/hermética dissolvência da resenha pura/palavra erecta”(pág 11). Assente num discurso de “a terceira voz“ (p. 30) - de afirmação de uma ars erotica - poderíamos falar, efectivamente, de uma poética do sensível – sob a hegemonia da terra-matriz animada - a partir justamente dum apego à insânia - o pathos dionisíaco - ou o privilégio do êxtasse e da ebriedade. Eis a questão fundamental que se põe: a escrita-excepção e o actor-xamane.

delphis, matriz

Existe um forte pendor lírico (mediúnico) na obra de Fátima Vale. Nela se põe em relevo a marca délfica (que nos remete à palavra delphis, a “matriz”) - o (inter) texto cultural - a hybris trágica - o fluir heraclíteo. Não é difícil notar o pendor de uma escrita que parte do ludus, jogo, e do illudere, jogar, é a aposta da desmesura, do discurso engenhoso. Pode dizer-se, contudo, que estes poemas nos remetem a um tipo de escrita erudita - (tran)sensorial - da desmedida do ser - do corpo pulsional (no fluxo de um idioma sumptuoso).

“plateaux”

“Falosofia”(incomunidade, 2012) de Bruno Miguel Resende é uma afirmação da (des)construção - dos insights para-sóphicos - da prática intertextual - primum falum - eros. No seu registro híbrido - mas também contaminação de géneros - torna-se visível uma escrita por “séries” ou “plateaux” - de (des)ligações - quadros - especulações - na imbrincação do teatro e do symposium. Todavia uma poética singular (no regime a-teológico) ancorada numa série de figuras ou narrativas - um parafrasear de multiplicidades - as glândulas genitais. Convém fazer referência - em sentido lato - a um texto puzzle onde se cruzam, em última análise, os chistes e os trocadilhos sofisticados, a ironia no “des-figurar” a convenção escrita.

montagens agenciamentos

Dez (10) quadros - digressões – que se fundam sobre a evenemencialidade da linguagem. Irrompências selváticas (do latim selvaticus, “o da floresta”), monó(diá)logos - dissertações - “textualidades vínicas” (p. 24). Um livro que nos remete, pois, a Apuleio, Rabelais, Jarry ou Bataille: as montagens agenciamentos - manipulações anagramáticas - encenações textuais. E isto a partir de um universo discursivo marcado pela tensão expressiva e simbólica – a língua como desejo - a inflexão inusitada - a (ultra)dimensão do sentido.

paradoxo

Bruno Miguel Resende começa o seu livro atribuindo à teatralidade um papel capital (põe precisamente, como Artaud, os mistérios de Elêusis como paradigma do teatro autêntico). Ele faz daí o “lugar” da emergência do paradoxal. O paradoxo não se opõe ao verdadeiro mas ao que nos parece ou aquilo que entendemos ser verdadeiro. O fim do paradoxo é para a filosofia o começo da verdade. O paradoxo é por isso a condição da possibilidade do pensamento. “Ora a verdade - como nos diz - escreve-se e enterra-se. Desenterra-se e reescreve-se (…) Confirma-se algo pela sua descendência” (pág. 13).

vénus - veneno

A noção de “Premonitório. Prestidigitação cosmogónica (…) Surrealização” (pág. 10) é também importante para compreender o ponto de vista sobre a escrita de Bruno Miguel Resende - enquanto voz do impossível - antropofagia - “redescoberta visceral do outro em nós” (pág. 6). Desenha-se uma lógica que nos remete à philia (amizade) e à sophia (saber, sagesse). Estas questões aclaram-se se as remontarmos à noção de philosophia - amor da sabedoria - ciência do ser - o que é já reactivação da theoria - que se de-compõe? Mas há mais: a primazia dum discurso em torno de vénus (e por meio da qual se chega à noção latina de amor físico, acto sexual). De vénus derivam o veneno (venenum) e o venenoso.

erecção e direcção

Voltemos à escritura, traço, suplemento, hymen, o falo(logos) (afim da erecção e da direcção). É aqui que intervém pã e príapo - o falo do corpo do deus para fazer dele o símbolo sagrado do erotismo. Os modelos que se trata são, igualmente, o venerável e o venéreo. Segundo as teses de Lacan o primeiro significante é o falo. Lembremos que Freud fala da premissa universal do falo, sendo este o lugar onde a diferença anatômica se torna logicamente impossível e onde - segundo - Germán L. Garcia - se produz a alienação de um sexo por outro, e desaparece a relação sexual. O real da diferença fica oculto (no sentido de ocultismo, de abismos e enigmas). O autor de "O chiste e a sua relação com o inconsciente" põe - no termo da análise psicanalítica - um nome à incerteza sexual generalizada - bissexualidade - que sanciona as dificuldades da identidade, a partir dos "caracteres sexuais".

Livraria Traga-Mundos, Vila Real, 10 de Março de 2012

Alexandre Teixeira Mendes

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