- lógica do convulso, uni-verso orgânico
“Ranhura” (principícios, Lisboa, 2012) de Carlos Vinagre (1987) põe de facto em relevo o eclodir do corpo e da escrita, abertura para o confronto com um horizonte pré-dado, sempre aberto, hiância ou fenda. Um substantivo feminino (preciso) como pré-requisito. Poder-se-ia levar em conta, porém, o seu pendor melancólico, uma poética de tensão e mesmo de paradoxo, onde se valoriza a imanência e o cepticismo (movimento iniciado por Piron e sua escola no século III A. C.)
e não mais que o aparato lógico
uma arritmia alojada pela porta do cutâneo
uma desconfiança de tudo quanto existe
e uma corda a enrolar-se na espuma exacta (p. 24)
A característica desta escrita é o relevo dado ao uni-verso orgânico (na sua expressão fisicista - nuclear e totalizante - de “arquétipos” ou “imagens-princípios”). Na utilização das metáforas quase-conceito relacionadas com as asserções “intensivas” da bioquímica - o ADN inscrito no corpo - a entropia - a indeterminação - a própria (in)comunicação patológica. "Há uma voz que soletra o impossível - abranda um impulso das estranhas. Escamo a pele até que o fumo invada a minha traqueia e eu me sinta perante o indizível" (p. 14). Referirmo-nos, por conseguinte, às sequências de experiências “irresolúveis”. De facto, as fórmulas esmagam-nos. Pensar com propriedade é difícil e demorado. E não nos julgamos no dever de dizer tudo: (in)comunicar.
desterritorialização e máquina humana
Trata-se, realmente, de uma escrita do orgânico e do aberto (à luz do corpo-pulsão e do psiquismo-representação). Mas não se trata de invocar o corpo-ser mutante e a escrita-palimpsesto - tudo o que concerne ao dictamem obscuro - a acentuação da poesia enquanto voz do impossível - o outro - indizível e intransferível .“Habitar o que não é habitável e deixar a lareira expandir-se, queimar a casa, arder todos os meus livros, todas as minhas recordações, todas as minhas cadeias, num exercício anti-poder que me liberte para o que não existe” (p. 9-10).Poderíamos falar de uma escrita centrada sobre a desterritorialização. Onde o que importa reter é uma palavra-chave: a máquina viva (auto-organizada). “Insisto na máquina humana. Desejo depô-la, deitá-la ao lixo, procurar o limbo incolor na fome do corpo, deitá-la fora e abrir as minhas costelas à procura de um outro coração que respire, com um suor mais vaporoso e uma forma aberta à imprecisão de tudo” (p. 9).
códigos da biologia
A força atractiva da poética de Carlos Vinagre evidencia-se de modo particular pela sua referência aos códigos da biologia. Que sentido tem (e ainda tem) falar da máquina neuronal que nos “distingue” do animal? Como se elabora o pensamento abstracto que nos caracteriza? Que significa o cérebro como um sistema auto-programado? Que relação poderá existir entre os objectos mentais procedentes do real e os chamados objectos mentais fictícios, inventados, imaginados? Encontramos aqui enunciada a questão do não-redutivo - as bifurcações do aberto - os quantas (Erwin Schrodinger). Assim, da noção primeira do não-linear (discontínuo), passamos a estoutra, mais precisa, de pseudo-aleatório (fractal). Compreende-se assim que a nova ciência fale mesmo de bifurcações, leis de escala, caos, atractores estranhos, intermitências. Fica assim expressa a démarche característica da escrita de Carlos Vinagre: a sua configuração paradoxal. Que aglutina e polariza em torno de si - numa escrita condensada e abreviada - uma série de questões pertinentes que parecem concentrar-se gradualmente à volta das noções de da ordem e da desordem - das com(dis)junções – dos imputs e dos outputs sensoriais. “os paradoxos são cruciais pela antevisão da/manhã./Por esta óptica adquiro uma transparência/ vulnerável, talvez uma ética./não é retalho. Ao dobrar de cada rua, ao bater,/alimentado pela ranhura das nuvens, outra busca” (p. 17).
Err(transum)ância
Importa, no entanto, ter em atenção que, neste poemário, a linguagem não é a “casa do ser” (Martin Heidegger) mas o lugar de uma metamorfose itinerante. De facto é lícito supor que ser, é ser nomeável. Conjuga-se assim o anúncio da err(transum)ância. “Não quero restar. Prefiro a convulsão, ser escutado pelo mundo, a minha língua é traída pelo verbo… Abisma-se a negritude das coisas. Quero abrir o tórax ao universo, despedaça-lo, ser escutado pelo sonho. Desejo a incomunicação” (p. 33). Ponto de partida e eixo fulcral é, prém, a negação das teorias do news-making - do “já dado” informacional - tendo em conta que a poesia surge-nos como transe (do latim transire = passar), “sagesse”, abertura (sináptica) para a visão (as experiências visionárias).
Bar Olimpo - Porto, 7 de Março de 2011
Alexandre Teixeira Mendes
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