Uma poética dos sincretismos icónicos e
devocionais
A referência que se destaca
entre todas as outras, em “Domingo no Corpo” de Aurelino Costa, é a da realidade
fílmica - a imagem-movimento - que coincide também com o material plástico e
humano - sob a fluidez (a magia) do sensível. Poemas-fotogramas - campos visuais
–textos-chave - onde se (re)afirma(explicitamente)- na sequência de um enredo
cinematográfico - um “eidos” do dessasssosego.
Látego filme do que não há
encanastra até ao gume tudo o que nos
consome
amor dório
estardalho lume
foco a verruga no olho casto
mergulho o cabelo comprido no lago do
teu
unto a zinco o seio no húmus da luz sistina
dos séculos
quando?, até quando sacro orvalho da manhã
d`outono
onde dispo o sonho?
(“o dia de hoje!”)
Percebemos delinear-se aqui uma
poética ancorada num ascetismo hiperbólico - uma (capital) depuração da
linguagem - onde se aglutinam metáforas da materialidade ou da vida orgânica
(conquanto evemenciais). Que é, pois, rigorosamente, uma poesia da
obliquidade - do quântico - que se reclama do campo do (in)dizível. Ela
exibe um certo compromisso de purificação, conversação e iniciação: coloca-se
regulado pela empiricidade do corpo enquanto desejo (que não é apenas polimorfo
e perverso é também mórbido).
ultimou insaciável a
encomenda:
o meu futuro é a morte.
em girândola fosca piscou
argonauta e saltarico
na engrenagem em válvula
submeteu-se ao futuro
prescrito na gôndola da
memória descascou a língua
muito calmamente como quem
aguça a farpa
mostrando a omoplata a
descoberto da noite
entoa uma gargalhada onde
peristilo alberga
a grande metáfora da
purificação
(“o dissolver”)
Do ápice (retiano) visionário
Consideremos, antes do mais, a
persistência de uma escrita - em escala microscópica - no ápice (retiniano)
visionário –halo (impulsivo) psicótico
-da “inscrição originária”. Assim se esboça uma poética das intensidades
e das fulgurações –das múltiplas e indefinidas intersecções –dos
“puzzles”ou imagens(sur)reais.
Sucintamente: uma poesia onde se descarta a circularidade viciosa da mente
(rescógita). Efectivamente, este poemário, situa-se num plano em que se
conciliam a percepção inconsciente e subliminar. Trata-se de uma escrita
compulsiva, tomada como um todo, que nos remete à evanescência do tempo. Aqui se
conjuga – como se supõe - para usar as palavras de André Green em “LesChaînes d
` Éros” - a força (dinâmica da pulsão) com o sentido (vectorizado pelas
representações de palavra da fala).
Agasalhei a febre líquida em
antuérpia
e balbuciei o nome da rã
por lagosta
não mais a leprosaria dos
escombros
mediu a aresta do gozo
prosélito recordo uma mão metálica
que me faz subir a estação
e engrossar a língua de tanto
gemer
até o confesso da chalaça
aquilatou ideias
como falar papas?
Mistura-se sangue em gema d’ ovos
e leva-se ao forno a alta
temperatura
até que o vapor condense
no fundo da boca
(“uma febre fenótipa das bruxas
elas”)
Da pulsão do real e do catolicismo
afectivo
A poesia de Aurelino Costa
surge-nos, em suma, inspirada no uno-todo - a ideia de cosmos - num tempo em que
a natureza foi dessacralizada. Podemos falar, no fundo, de uma poética de teor
religioso (existencial) que - sem fazer apelo à “hipótese Deus”- nos surge
identificada com a proclamação da palavra (desfilando suas experiências da
quotidianeidade e dos objectos comuns poetizados - ou, mais simplesmente, dos
cenários dos animais e da terra animada). É, todavia, a partir do desejo
(deslizante) e da linguagem (movente) que podemos deduzir a “pulsão do real”
nesta escrita. Que incorpora, desde o início, uma tensão entre o sagrado e o
profano. Nas projecções e introjecções de um catolicismo afectivo (longe das
predisposições beatas, dogmatistas, obscurantistas, de ghetto), é crucial falar,
se se preferir, de uma obra do detalhe minucioso - consubstanciando um
expressionismo abstracto - tensional. Podemos descortinar núcleos metafóricos,
rastrear influências, supostas ou reais, enquanto registo ou captura da vivência
humana.Parte-se da “experiência absoluta” que, como assinala p. ex. Emmanuel
Levinas, “não é desvelamento, mas revelação”.
o silêncio mármore do lampadário
arde
enquanto move líquido a fala de
bispo
poderei ressuscitar a cobra aos pés da
santa
- a garupa teme os salmos mais tensos
como oscilar entre o martírio
renegado
e a comunhão dos hospícios?
move-me o perímetro da testa…
por litro?
- entre arcanjos?
(“gominhos d`alho doce”)
da paradoxalidade e do fatum
Começamos a poder elucidar, em
pormenor,a natureza e o alcance desta poética de acoplamentos (inusitados) - sob o signo da paradoxalidade - mas onde se
pressupõe, desde o início, o fatum - o “sentimento trágico da vida” (que
experimenta o ser humano).
estender as mãos
no peito elegíaco da memória
debruçar sobre as anémonas
neste dia de tragos húmidos e
verdes
de sol borracho e intempéries
colher hálitos de begónias
selvagens
e não morrer
há um pathos maior
e coagulador
neste fado
(“à excepção”)
A escrita de Aurelino
enraíza-se na escuta poética da natureza. É preciso reconhecer que a antiga
aliança foi quebrada. Na “relevância” - na pertinência e na actualidade da
psico(pato)logia - onde a “coisa em si” é o ser humano. E é exactamente uma
escrita elegíaca e melancólica (no seu foco próprio e sentido amplo) que também
tem fontes arcaicas e religiosas (sincretismos icónicos e devocionais). O
aspecto penitencial de alguns dos seus textos exerce, muitas vezes, uma função
terapêutica.
Da intentio de desconstrução e do “zoo
humano”
Uma escrita de concisão verbal
- no seu intentiode des-construção -
onde se descobre o “zoo humano” - o “parque zoológico” (na fórmula de Peter
Sloterdijk) - onde se interpõe a
(re)consideração radical do humano. Será útil que nos detenhamos no
carácter ambíguo e complexo da sua linguagem - no continuum situacional do que
nos transporta ao animal humano ou o que podemos chamar pathos: por um lado, o
fluxo caótico do real, a incompletude ontológica; por outro lado, o vazio, o
abismo onto-existencial que atravessa e define o homem. No seu influxo lírico e
religioso onde se amalgama o tempo não-conciliado - o caos-cosmos - a
imagem-movimento (referida ao sublime) e uma certa hybris (sensível, pensante) -
descortinamos, no entanto, lógicas seminais
derramo sobre o tojo
a sede e o veneno
lavar-me-ei mais tarde
o meu corpo etiquetado
aproxima-se de outro
aguarda, o costume.
qual o lado da verdade quando se
alapa
e trunca sobre o poder sua farpa de
origem:
ou morres ou és sacana, estás comigo ou és
contra mim?
(“lavar-me-ei mais
tarde”)
do proprium, do si, do self
Os seus poemas interpelam,
circularmente, se assim podemos dizer, o homem - do latim homo - cuja etimologia
é da mesma raiz da palavra húmus (terra) - que padece de uma essencial
fragilidade e transporta em si o inusitado e o (des)integrativo. O incontestável é que - na sua escrita -
entrecruza-se a referência a uma atmosfera subjectiva de enaltecimento e
revelação da humana conditio - através da path-ética - onde se restitui à psychè
o seu lugar próprio no composto humano. Mas neste caso a dialéctica da
individuatio - do proprium, do si, do self - a (in)vulgaridade do existir.
Tocamos, aqui, no reconhecimento de nossa dependência e vulnerabilidade. Não se
pode perder de vista o importante facto de que somos seres únicos e irrepetíveis
- intrinsecamente feitos de ilusões e - havemos de concordar - falíveis -
permeáveis aos erros - esmagados mais uma vez pelas “grandes narrativas”.
Vemo-nos, claramente, confrontados com a (im)possibilidade da pureza e do
milagre: a própria inacessibilidade da felicidade e da redenção (salvação).
da compulsão à repetição
Em Aurelino Costa
defrontamo-nos com os nossos actuais descontentamentos - para usar uma expressão
de Tony Judt - se nos confinamos à política do medo - o culto da privatização -
e, portanto, o feiticismo do dinheiro e da mercadoria. Apercebemo-nos desse
singular paradoxo: a solidão efectiva, a psicose como forma de existir
(Binswanger). Pense-se, por exemplo, na tendência à repetição ou compulsão de
repetição que é - segundo Freud – a característica mais relevante do neurótico.
mar ingente os hipermercados
bocas de fome as embalagens
as luzes que tremem são teus olhos
incapazes de (a)pagar a
electricidade
o design do nada nas palmas o silêncio
que fazem no verde código verde?
Oficiar avés na ladainha dos
preços?
passam de carro as caras aquecidas
não tens lugar para o choro, resta-te o
frio
dos cartões ninguém se descarta:
contaste 12 visas e masters na
carteira
que encontraste sem código
alguns vizinhos teus do sub
murcham a óptica em direcção à
esperança.
tu desligas as tuas luzes.
talvez não acordes.
(“mar ingente os
hipermercados”)
do (in)vertebrado
Cabe ainda uma reflexão sobre o
fulcro do desejo (da voluptuosidade) nesta escrita impregnada da afirmação
objectal. Aqui radica a dávida (agapé), a caritas, o sacramental, a fidelidade
vinculativa. Parte-se várias e reiteradas vezes da sacralização da vida
quotidiana - da errância e dos meandros do mundo movente e onírico (a face
bivalente das coisas) - da convicção nobre e antigaa de que tudo está ligado.
Dito isto, será fácil de compreender uma poética(in)vertebrada -da veneração e
da vibração panteísta - no compromisso do que mais importa (Plotino)- impregnada
da beatitude e do desvario - da instância cinematográfica-musical -a consabida
extroversão. Seja como for, o certo é que a poética de Aurelino Costa coloca-se
na direcção de um reconhecimento da primazia do impulso, do corpo, do sensorial,
do genital.
Subtraído e alheado o testículo anelar
sobe e desce a súbita garganta
descarrega o pássaro
na bota
o apostolado em orgia branqueia o
vinho
os congregados adormecem
que repouso
(“sem, tudo é mais tranquilo e
doce”)
da iluminação e do
(ir)representável
Haveria muito a dizer sobre um
tipo de escritura poética que interiorizou a veemência da “iluminação profana”
(Walter Benjamin), pressupõe um privilégio do emocional sobre o cognitivo..E que
permanece, rigorosamente, uma poética da “circunstância” biográfica” (onde se
perscruta, no seu aparato, o “script” da vida). Neste contexto, reveste-se de
particular ênfase a relevância concedida ao corpo pulsional (sexuado) apossado
pela linguagem e que é fonte de uma potência subversiva (o daimon, o oráculo
interior). Encontramos aqui também claramente subjacente a noção de que o
conceito de (com)pulsão pressupõe a linguagem e a ordem simbólica. Não há dúvida
de que é o surgimento da palavra que faz emergir, concomitantemente, a ordem
humana. Lembremo-nos que a escrita - que se interpõe no caminho do corpo -
passivo - subjectivo -é, em diferentes níveis, a metáfora do silêncio
Pressupõe-se que o vazio é o silêncio da palavra. Assim se encontram misturadas
a linguagem depurada (dentro do cânone da poesia clássica) e as expressões de um
poetizar desviante (entenda-se: impuro, “bizarro”, “niilista”). A ênfase está na
sua associação ao indecifrável. Já o cut-up, a montagem, no pressupor a escrita
como traço do (ir)representável, que dá voz (e a voz) ao (in)comunicável.
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