quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

DO MUNDO MOVENTE, EVEMENCIAL, FÍLMICO EM AURELINO COSTA

Uma poética dos sincretismos icónicos e devocionais


A referência que se destaca entre todas as outras, em “Domingo no Corpo” de Aurelino Costa, é a da realidade fílmica - a imagem-movimento - que coincide também com o material plástico e humano - sob a fluidez (a magia) do sensível. Poemas-fotogramas - campos visuais –textos-chave - onde se (re)afirma(explicitamente)- na sequência de um enredo cinematográfico - um “eidos” do dessasssosego.

Látego filme do que não há

encanastra até ao gume tudo o que nos consome

amor dório

estardalho lume



foco a verruga no olho casto

mergulho o cabelo comprido no lago do teu

unto a zinco o seio no húmus da luz sistina dos séculos



quando?, até quando sacro orvalho da manhã d`outono

onde dispo o sonho?



(“o dia de hoje!”)

 
Percebemos delinear-se aqui uma poética ancorada num ascetismo hiperbólico - uma (capital) depuração da linguagem - onde se aglutinam metáforas da materialidade ou da vida orgânica (conquanto evemenciais). Que é, pois, rigorosamente, uma poesia da obliquidade - do quântico - que se reclama do campo do (in)dizível. Ela exibe um certo compromisso de purificação, conversação e iniciação: coloca-se regulado pela empiricidade do corpo enquanto desejo (que não é apenas polimorfo e perverso é também mórbido).



ultimou insaciável a encomenda:

o meu futuro é a morte.



em girândola fosca piscou argonauta e saltarico



na engrenagem em válvula submeteu-se ao futuro

prescrito na gôndola da memória descascou a língua

muito calmamente como quem aguça a farpa

mostrando a omoplata a descoberto da noite

entoa uma gargalhada onde peristilo alberga

a grande metáfora da purificação



(“o dissolver”)

 
Do ápice (retiano) visionário

Consideremos, antes do mais, a persistência de uma escrita - em escala microscópica - no ápice (retiniano) visionário –halo (impulsivo) psicótico -da “inscrição originária”. Assim se esboça uma poética das intensidades e das fulgurações –das múltiplas e indefinidas intersecções –dos “puzzles”ou imagens(sur)reais. Sucintamente: uma poesia onde se descarta a circularidade viciosa da mente (rescógita). Efectivamente, este poemário, situa-se num plano em que se conciliam a percepção inconsciente e subliminar. Trata-se de uma escrita compulsiva, tomada como um todo, que nos remete à evanescência do tempo. Aqui se conjuga – como se supõe - para usar as palavras de André Green em “LesChaînes d ` Éros” - a força (dinâmica da pulsão) com o sentido (vectorizado pelas representações de palavra da fala).



Agasalhei a febre líquida em antuérpia

e balbuciei o nome da rã

por lagosta



não mais a leprosaria dos escombros

mediu a aresta do gozo

prosélito recordo uma mão metálica

que me faz subir a estação

e engrossar a língua de tanto gemer



até o confesso da chalaça

aquilatou ideias

como falar papas?



Mistura-se sangue em gema d’ ovos

e leva-se ao forno a alta temperatura

até que o vapor condense

no fundo da boca



(“uma febre fenótipa das bruxas elas”)


Da pulsão do real e do catolicismo afectivo

A poesia de Aurelino Costa surge-nos, em suma, inspirada no uno-todo - a ideia de cosmos - num tempo em que a natureza foi dessacralizada. Podemos falar, no fundo, de uma poética de teor religioso (existencial) que - sem fazer apelo à “hipótese Deus”- nos surge identificada com a proclamação da palavra (desfilando suas experiências da quotidianeidade e dos objectos comuns poetizados - ou, mais simplesmente, dos cenários dos animais e da terra animada). É, todavia, a partir do desejo (deslizante) e da linguagem (movente) que podemos deduzir a “pulsão do real” nesta escrita. Que incorpora, desde o início, uma tensão entre o sagrado e o profano. Nas projecções e introjecções de um catolicismo afectivo (longe das predisposições beatas, dogmatistas, obscurantistas, de ghetto), é crucial falar, se se preferir, de uma obra do detalhe minucioso - consubstanciando um expressionismo abstracto - tensional. Podemos descortinar núcleos metafóricos, rastrear influências, supostas ou reais, enquanto registo ou captura da vivência humana.Parte-se da “experiência absoluta” que, como assinala p. ex. Emmanuel Levinas, “não é desvelamento, mas revelação”.



o silêncio mármore do lampadário

arde

enquanto move líquido a fala de bispo

poderei ressuscitar a cobra aos pés da santa



- a garupa teme os salmos mais tensos



como oscilar entre o martírio renegado

e a comunhão dos hospícios?



move-me o perímetro da testa…



por litro?



- entre arcanjos?



(“gominhos d`alho doce”)


da paradoxalidade e do fatum

Começamos a poder elucidar, em pormenor,a natureza e o alcance desta poética de acoplamentos (inusitados) - sob o signo da paradoxalidade - mas onde se pressupõe, desde o início, o fatum - o “sentimento trágico da vida” (que experimenta o ser humano).



estender as mãos

no peito elegíaco da memória



debruçar sobre as anémonas

neste dia de tragos húmidos e verdes



de sol borracho e intempéries



colher hálitos de begónias selvagens

e não morrer



há um pathos maior

e coagulador



neste fado



(“à excepção”)

 
A escrita de Aurelino enraíza-se na escuta poética da natureza. É preciso reconhecer que a antiga aliança foi quebrada. Na “relevância” - na pertinência e na actualidade da psico(pato)logia - onde a “coisa em si” é o ser humano. E é exactamente uma escrita elegíaca e melancólica (no seu foco próprio e sentido amplo) que também tem fontes arcaicas e religiosas (sincretismos icónicos e devocionais). O aspecto penitencial de alguns dos seus textos exerce, muitas vezes, uma função terapêutica.

 
Da intentio de desconstrução e do “zoo humano”

Uma escrita de concisão verbal - no seu intentiode des-construção - onde se descobre o “zoo humano” - o “parque zoológico” (na fórmula de Peter Sloterdijk) - onde se interpõe a (re)consideração radical do humano. Será útil que nos detenhamos no carácter ambíguo e complexo da sua linguagem - no continuum situacional do que nos transporta ao animal humano ou o que podemos chamar pathos: por um lado, o fluxo caótico do real, a incompletude ontológica; por outro lado, o vazio, o abismo onto-existencial que atravessa e define o homem. No seu influxo lírico e religioso onde se amalgama o tempo não-conciliado - o caos-cosmos - a imagem-movimento (referida ao sublime) e uma certa hybris (sensível, pensante) - descortinamos, no entanto, lógicas seminais



derramo sobre o tojo

a sede e o veneno



lavar-me-ei mais tarde

o meu corpo etiquetado

aproxima-se de outro

aguarda, o costume.



qual o lado da verdade quando se alapa

e trunca sobre o poder sua farpa de origem:

ou morres ou és sacana, estás comigo ou és contra mim?



(“lavar-me-ei mais tarde”)

 
do proprium, do si, do self

 
Os seus poemas interpelam, circularmente, se assim podemos dizer, o homem - do latim homo - cuja etimologia é da mesma raiz da palavra húmus (terra) - que padece de uma essencial fragilidade e transporta em si o inusitado e o (des)integrativo. O incontestável é que - na sua escrita - entrecruza-se a referência a uma atmosfera subjectiva de enaltecimento e revelação da humana conditio - através da path-ética - onde se restitui à psychè o seu lugar próprio no composto humano. Mas neste caso a dialéctica da individuatio - do proprium, do si, do self - a (in)vulgaridade do existir. Tocamos, aqui, no reconhecimento de nossa dependência e vulnerabilidade. Não se pode perder de vista o importante facto de que somos seres únicos e irrepetíveis - intrinsecamente feitos de ilusões e - havemos de concordar - falíveis - permeáveis aos erros - esmagados mais uma vez pelas “grandes narrativas”. Vemo-nos, claramente, confrontados com a (im)possibilidade da pureza e do milagre: a própria inacessibilidade da felicidade e da redenção (salvação).

 
da compulsão à repetição

 
Em Aurelino Costa defrontamo-nos com os nossos actuais descontentamentos - para usar uma expressão de Tony Judt - se nos confinamos à política do medo - o culto da privatização - e, portanto, o feiticismo do dinheiro e da mercadoria. Apercebemo-nos desse singular paradoxo: a solidão efectiva, a psicose como forma de existir (Binswanger). Pense-se, por exemplo, na tendência à repetição ou compulsão de repetição que é - segundo Freud – a característica mais relevante do neurótico.



mar ingente os hipermercados

bocas de fome as embalagens

as luzes que tremem são teus olhos

incapazes de (a)pagar a electricidade



o design do nada nas palmas o silêncio

que fazem no verde código verde?

Oficiar avés na ladainha dos preços?



passam de carro as caras aquecidas

não tens lugar para o choro, resta-te o frio

dos cartões ninguém se descarta:

contaste 12 visas e masters na carteira

que encontraste sem código



alguns vizinhos teus do sub

murcham a óptica em direcção à esperança.



tu desligas as tuas luzes.

talvez não acordes.



(“mar ingente os hipermercados”)


 
do (in)vertebrado

Cabe ainda uma reflexão sobre o fulcro do desejo (da voluptuosidade) nesta escrita impregnada da afirmação objectal. Aqui radica a dávida (agapé), a caritas, o sacramental, a fidelidade vinculativa. Parte-se várias e reiteradas vezes da sacralização da vida quotidiana - da errância e dos meandros do mundo movente e onírico (a face bivalente das coisas) - da convicção nobre e antigaa de que tudo está ligado. Dito isto, será fácil de compreender uma poética(in)vertebrada -da veneração e da vibração panteísta - no compromisso do que mais importa (Plotino)- impregnada da beatitude e do desvario - da instância cinematográfica-musical -a consabida extroversão. Seja como for, o certo é que a poética de Aurelino Costa coloca-se na direcção de um reconhecimento da primazia do impulso, do corpo, do sensorial, do genital.



Subtraído e alheado o testículo anelar

sobe e desce a súbita garganta

descarrega o pássaro

na bota



o apostolado em orgia branqueia o vinho



os congregados adormecem

que repouso



(“sem, tudo é mais tranquilo e doce”)

 
da iluminação e do (ir)representável

 
Haveria muito a dizer sobre um tipo de escritura poética que interiorizou a veemência da “iluminação profana” (Walter Benjamin), pressupõe um privilégio do emocional sobre o cognitivo..E que permanece, rigorosamente, uma poética da “circunstância” biográfica” (onde se perscruta, no seu aparato, o “script” da vida). Neste contexto, reveste-se de particular ênfase a relevância concedida ao corpo pulsional (sexuado) apossado pela linguagem e que é fonte de uma potência subversiva (o daimon, o oráculo interior). Encontramos aqui também claramente subjacente a noção de que o conceito de (com)pulsão pressupõe a linguagem e a ordem simbólica. Não há dúvida de que é o surgimento da palavra que faz emergir, concomitantemente, a ordem humana. Lembremo-nos que a escrita - que se interpõe no caminho do corpo - passivo - subjectivo -é, em diferentes níveis, a metáfora do silêncio Pressupõe-se que o vazio é o silêncio da palavra. Assim se encontram misturadas a linguagem depurada (dentro do cânone da poesia clássica) e as expressões de um poetizar desviante (entenda-se: impuro, “bizarro”, “niilista”). A ênfase está na sua associação ao indecifrável. Já o cut-up, a montagem, no pressupor a escrita como traço do (ir)representável, que dá voz (e a voz) ao (in)comunicável.




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