De entre os últimos livros de António Pedro Ribeiro, merece ser especialmente citado “Fora da Lei” (e-ditora, Braga, Dezembro de 2012), um poemário miscelânea- iconoclasta que inclui um CD com gravações (recitações) do autor e diseur (ao longo do ano corrente). Todos estaremos de acordo em que estas páginas se inscrevem no quadro de uma escrita testemunho assente em esquemas e fórmulas composicionais pré-estabelecidas - jogos enunciativos - temáticas de teor auto-biográfico (no seu contexto preciso: o domínio dos “fantasmas” pessoais). “Combato os demónios/como Horderlin, Kleist, Nietzsche/vou até ao infinito” (p.30). Desta escrita, segundo o quadro poético-base dos fluxos mentais e da errância - habitual e constante - de ser e ser algo – singular e próprio - das combinações múltiplas – fica-nos a vizinhança imediata com o “caminho excêntrico” de que nos fala Hörderlin. Tem assim o condão de nos remeter à u-topia e ao niilismo (democrático).
hors la loi
Esta poética surge-nos, antes de mais nada,
associada à recusa do poder e do controlo tecnopolita
(para usar a expressão de Harvey Cox). Mostra-se-nos guiado pela crítica das
estruturas centralizadas de dominação e, no entanto, do capitalismo manipulativo
(onde será necessário acrescentar: a lógica do (ter sobre o ser) mercantil). Diremos que
estes textos-poemas coincidem também com um tom semi-insurrecional - no re-assumir da praxis política - da dialéctica do fora-da-lei, hors la loi - do “discurso livre”. E em que se reclama o compromisso
militante (minoritário) e o próprio ideário da liberdade: a "liberdade livre" de Rimbaud. A escrita de António
Pedro Ribeiro - já o dissemos antes - sempre se mostrou possuída por uma paixão
central da “urbs” - a prática viva e“mítica” da cidade-panorama - transumante
ou metafórica - da “polis” - dos “voyeurs” ou caminhantes
metropolitanos- “on the road” - bem à maneira da beat generation - do “dire-vrai”
sobre eros - as questões atinentes a todo o poder-dominação que se volve
demoníaco (a “Kultur” consumista ou o “American Way of Life”).
iluminações
Na acentuação crítica do mundo quotidiano (everyday-world) e do mundo da vida (life-word) - sob um fundo filosófico partilhado que nos
remete à Internationale situationiste
francesa e seus sonhos de revolução e libertação no domínio da vida quotidiana -
as teses criticistas de Henri Lefebvre - esta poemática
encerra em si, necessariamente, uma vocação dialógica e comunal. O point de départ da poesia de António
Pedro Ribeiro é, em sentido rigoroso e original, a discussão sobre
“representação” e “autoridade”: a sociedade do espectáculo. A originalidade desta escrita-vórtice está no contínuo
movimento de imersão/ re-emersão da palavra - dando prevalência à vox (vocis) - às “iluminações”. Poderemos pôr
em evidência um tipo de poesia engagé - pós-radical - de inscrição
ideológica “para-marxista”. Na crítica dos módulos e fórmulas da sociedade de
mercado e de dominação - num contexto de “acelerada” “liquefacção” das
estruturas e instituições sociais em que hoje naufragamos- esta poética prima,
antes de mais, pela singularidade e intransigência do seu radicalismo (a lição
báquica): “mas há noites em que
Dionísios/volta e aí dança, celebra e faz/tremer o instituído” (p.31)
niilismo
Os poemas de António Pedro Ribeiro exibem, em seu
contexto de significação original, um questionar social e político: advogam um niilismo
extremo, o l´enjeu do
individualismo revolucionário (na acepção de Alain Joufroy). Sob a égide da
crítica básica do sistema industrial-consumista - denunciam-se as patologias e
as fraquezas da razão instrumental - os truques e mentiras (a linguagem corrente) dos contabilistas e
dos economistas - do poder soberano e das suas instituições - a situação humana, the human predicament (na conceituação do teólogo Paul Tilitch). Mais ainda,
os oligopólios - o mundo financeiro - o
escravismo e a opressão mercantil - a estrutura e a lógica da
“sociedade unidimensional” (v. Manifesto Antinormalidade, p. 26-27). Unindo-se ao niilismo de Max Stirner e Guy Debord - as razões de uma
revolta anárquico-libertária - Rimbaud, Morrison, Ginsberg e Miller - o próprio
riso de Zaratustra – a obra de António Pinto Ribeiro assenta, de per si, na assumpção cénica (assertiva) do desejo ( a "indizibilidade do único"). Não
teremos dificuldade em entender, desde já, porque os gregos falavam de um logos
spermatikos, a palavra geradora ou o pensamento seminal.
trans(e)versal
A poesia de António Pedro Ribeiro assenta, por conseguinte, - já o vimos precedentemente - na crítica da alienação
(manipulação autoritária) e da dominação (instrumental, organizacional e
psíquica) - cujo protótipo simbólico é o “Zé-Ninguém” de W.Reich. Referimo-nos a uma escrita que veicula latu sensu a insânia, o pathos da loucura e a ebriedade. Não se deve perder de vista a plenitude e a beatitude de uma poética sugerindo um caminho (de discernimento) alternativo (primordial e iluminativo): "asceta longe da tribo xamã encoberto" (p.21).Trata-se
- à primeira vista - de uma escritura “engajada” - de apego ao trans(e)versal -
que se opõe à visão normal - convencional. Poderíamos falar longamente sobre a
conscienciosa rebelião desta poesia (porquanto uma escrita da contestação, do
dissentimento ou da recusa). Temos assim uma poética mundivivencial da dicção coloquial
quotidiana (para além da mera tradição lírica-discursiva).
activismo
existencial
A poesia negativa e
dialéctica-dialógica - catártica e des-construtora - assume a dissidência - o
poder da contestação e do protesto que é essencial a todo o pensamento livre e
criador. Esta escrita denunciadora do “vazio” do mundo - da ideologia e da linguagem
tecnocrática do capitalismo planetário (que transforma a pessoa humana em um
ser domesticado e unidimensional) esforça-se por ser - sob as estratificações
das convenções fixas - uma poesia dos transes e transportes visionários.
E é ainda bem preciso e essencial notar o seu pendor oracular e na coincidência
com as correntes beat. Uma das dimensões destes textos é o forte
pendor ideológico - enquanto propensão crítica do ethos do domínio
capitalista e inclusive da res publica burguesa. Já que se admite que o
poder político é basicamente sustentado pela coerção física, enquanto que o
poder económico se sustenta através de recompensa e privação. hybris
Trata-se de uma poesia da iconoclastia e da irreverência (composta de palavras-chave no sentido estrito) que enaltece, vimo-lo nos capítulos precedentes, a auto-reflexão. Em que há também um exercício crítico em torno da sociedade autoritária “unidimensional”. Por fim, o questionamento dum mundo dominado por critérios de eficiência e sucesso e, por conseguinte, assente na “auto-escravização”do humano. Verificar-se-á que esta poesia - com os seus laivos de narcisismo umbiguista - está necessariamente ligada ao activismo existencial-visionário: de negação do ethos e do pathos do autoritarismo. Noutras palavras: uma escrita que patenteia, desde as primeiras obras, uma opção ético-política libertária. Falámos dos insigths de uma poética que nos surge mobilizada pelo “sagrado selvagem - o amor ao prolixo- a pro-jecção da hybris. “sou o canto das aves/e das sereias/sou aquele que renasce/e aquele que bebeu o Graal/que esteve com Jesus,/Merlin e Zaratustra//sou o super-homem/o poeta que reinará/sobre a Terra/sou Quixote/a lutar contra os moinhos/sou Artur de Camelot/sou todos os vencidos/que hão-de vencer/sou a água dos rios/sou o poema que não acaba/a canção que não se cala/o ouro todo do mundo” (pp.18-19)
profecia
Parece pois
que as diligências da escrita de António Pedro Ribeiro, do poeta como do
“performer”, são comandadas, cada vez mais, pela “projecções” do inconsciente.
Isto traz-nos à mente os mecanismos de dissociação efectiva da identidade. A
sua forca de gravitação está na apologia do “espírito livre”: libertação e
liberdade colectiva. Tendo em conta essa outra virtude que é a poesia manifesto. Mais:
a causa em que parece enfileirar é a causa da velha e da nova esquerda em
estilo profético: democracia, auto-governo, organizações de base. É aqui que se
faz importante a verificação da missão da denúncia e da profecia (já o
indicamos anteriormente). Mas onde se enfatiza a liberdade e a “auto-determinação”: a de que
somos “fazedores de mundo” (assinale-se a obra "Ways of Worldmaking" (1978) de Nelson Goodman) e a de que - note-se - estamos
constantemente a fazer “novos mundos a partir dos velhos”. Como no-lo diz: “Capaz de gerar estrelas crio mundos novos”
(p.43). Mas, pela sua própria natureza, uma poesia de "demanda" que - no seu teor
cívico-ético - planfletarismo - simboliza a insurreição, a revolta, enfim, a
crítica ao fascismo (democrático) em acto - que
Agamben-Foucault denominou "bio-poder" - , quando se associa a visão paradigmática política do Ocidente ao campo
de concentração.
(contra)poder
A poética da qual falamos é o exercício de um "contra-poder" (num aferrar-se à ideologia libertária e democratista). “Os instrumentos pelos quais o poder é exercido e as fontes do Direito para esse exercício - escreve Kenneth Galbraith – estão interrelacionadas de maneira complexa. Alguns usos do poder dependem de estar oculto, de não ser evidente a submissão dos que a ele capitulam” (Anatomia do Poder, Difel, Lisboa, p. 19). Observar-se-á, portanto, que o poder (no estrito exercício e manutenção) nunca pode, afinal, dissociar-se do seu appparatus. O que não podemos esquecer é que a história é normalmente escrita em torno do exercício do poder. Assim sendo poderia igualmente ser escrita em torno das fontes do poder e dos instrumentos que o impõem (Ib. p.105). Haveria apenas de perguntar se, basicamente, a finalidade do poder é hoje o exercício do próprio poder? E se tem ainda sentido admitir-se a poesia - passivamente como activamente - num mundo assente nas relações de poder - enquanto dom, hospitalidade, transe, desmesura?
A poética da qual falamos é o exercício de um "contra-poder" (num aferrar-se à ideologia libertária e democratista). “Os instrumentos pelos quais o poder é exercido e as fontes do Direito para esse exercício - escreve Kenneth Galbraith – estão interrelacionadas de maneira complexa. Alguns usos do poder dependem de estar oculto, de não ser evidente a submissão dos que a ele capitulam” (Anatomia do Poder, Difel, Lisboa, p. 19). Observar-se-á, portanto, que o poder (no estrito exercício e manutenção) nunca pode, afinal, dissociar-se do seu appparatus. O que não podemos esquecer é que a história é normalmente escrita em torno do exercício do poder. Assim sendo poderia igualmente ser escrita em torno das fontes do poder e dos instrumentos que o impõem (Ib. p.105). Haveria apenas de perguntar se, basicamente, a finalidade do poder é hoje o exercício do próprio poder? E se tem ainda sentido admitir-se a poesia - passivamente como activamente - num mundo assente nas relações de poder - enquanto dom, hospitalidade, transe, desmesura?
leviathan
Café-Bar Olimpo
Porto 21 de
Dezembro de 2012
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