quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

DO SENTIR, DA EXCEPÇÃO FEMININA



Do sentir, da excepção feminina

O livro de estreia de Antonieta Barros “Sons da Alma” (Culture Print, Porto, Janeiro 2012) reveste uma indiscutível força poética. Podemos (devemos aliás) afirmar que o que aflora nesta escrita, em extensão e profundidade, é o seu fulcro confessional - enquanto veículo terapêutico-existencial - que oscila entre o catártico e o sublimador. Trata-se, pois, de um livro onde se increve (de forma directa, imediata) um transbordamento pulsional, o próprio eclodir de um corpo seminal (onde se exorciza a configuração amorosa e as suas projecções fantasmáticas).

vicissitudes do desejo

Poderíamos falar ainda, porém, numa poética do dionisismo e da auto-reflexão ou, pelo menos, de uma escrita do “acolhimento” e da “plenitude” - a restabelecer ou a inverter as cogitações da razão e dos sentidos. O carácter prosaico e convencional encontra-se assim assente num erotismo transferencial e (in)contido. Um erotismo que, antes de tudo, refere-se à prevalência de um corpo sexuado ou retenção das vicissitudes (metamorfoses) do desejo: as emoções e os afectos.

(intro)projecções

Todavia, a celebração do amor (signo do impossível) e, no entanto, da introspecção e do sentir (interior, singular, subjectivo, privado) em Antonieta Barros é particularmente importante. Pretendemos assim mostrar a relevância do "inominável" da paixão. É de resto absolutamente certo dizer-se que o que domina (preliminarmente) esta linguagem são os desvãos e os subsolos de um mundo psíquico. Curiosamente uma escrita das (intro)projecções, que reflecte experiências já prefiguradas: l`amour fou.

(semi)dizer

Traço-voz- sons da alma - como pré-requisito. Escrita-una do mundo, mas também viagem sentimental - rastro da totalidade - lógica subtil e impenetrável - em que o descontínuo substitui o contínuo. O que começara como uma escrita-gozo - de forte pendor romântico-intimista - , torna-se a versão de um discurso da alma (Psichê) entre Eros e Ananké. Remete-nos, como sabemos, aos recursos de um (semi)dizer - ao simbolismo do si-mesmo - a uma demanda (que jorra à altura da (com)pulsão erótica). E aqui, mais uma vez, um léxico e uma matéria verbal de auto-implicação - afectiva-emotiva - que emana do inconsciente pessoal e do inconsciente sobrepessoal ou colectivo.

corporeidade e (in)consciente

Em “Sons da Alma” reproduzem-se as disposições ou os devaneios de um discurso singular. Um exemplo da vida escrita - (in)apreensível - enquanto privilégio do emocional sobre o cognitivo. Antes, põe em cena a corporeidade e o (in)consciente: a clivagem amorosa. Não é difícil notar que a intensificação de traços flutuantes - em que o feminino resume todas as formas e mistérios da natureza - é, por sinal, uma intensificação de conteúdos arquétipos da alma humana. O autêntico mergulho na matéria que somos - pôde escrever Jean-Yves Leloup - devolve-nos a alma e, também, a essência. Não podemos separar o que a própria vida uniu: o corpo, a alma e o espírito.


ansiedade existencial

Dá-se, assim, neste livro de Antonieta Barros, o enlace entre o corpo e a alma, a assinatura do mundo. Aqui se revisitam os simulacros do sentir e do sensível - o real da (a)língua - esse desejo de "outrem". Da cegueira do olhar à fantasia - o gozo em excesso ou suplementar - que permanece para além do símbolo - substancializado na prosa. Trata-se simplesmente, como já mencionámos, de um conjunto de textos auto-biográficos - signos - exercícios da escrita - propensos a uma certa unidade - estruturados - letra a letra - por camadas de (in)dizível. E em que o “eu” é veiculado, sem omissões, incorporando a vida significativa, a ansiedade existencial, a intencionalidade poética.

auto-análise

A peculiaridade, decorrente desta escrita, é o seu forte pendor intimista - de acesso ao mundo - que desponta, por conseguinte, num corpo libidinal, evocativo ou não-evocativo, psíquico e de transgressão, sublimado ou não, irredutível. É simplesmente a admissão e o reconhecimento, porém, de uma poética (texto/relato) comprometida com a auto-análise (nossa capacidade de ver e conhecer - com
discernimento - em bases "prismáticas"). E em que essa praticabilidade e conveniência da auto-análise poderia bastar - se o único objectivo do livro de Antonieta Barros fosse o conhecimento de si próprio. Só que a dificuldade crucial da autoanálise - para retomar um pressuposto de Karen Horney - está nos factores emocionais que nos deixam cegos ante as forças inconscientes.

lirismo sentimental

O corpus destas 59 incursões - na sua ressonãncia emotiva e encantatória de carta-endereço - intensa e passional - surge-nos como emblema da sublimação e da efusão sentimental. Textos inextricavelmente (inter)ligados - enquanto concretude dia(mono)lógica - e, portanto, vinculados à imediatez de um discurso cujo “modus operandi” é um pôr em acção a própria emoção. Parte-se do exemplo de uma textualidade - longe dos estereótipos - cuja primazia pertence, por isso mesmo, aos sentimentos, a paixão, a emoção (tudo isso na ordem contingente de um lirismo sentimental).

“daimon”

Poderíamos re-equacionar - talvez em vão - a experiência do sensível a partir justamente dum corpo linguagem ou, se quisermos, dum corpo simbólico, corpo esse que, também ele, tende a tornar-se sentido? Deste modo um corpo - nos seus sintomas e somatizações - e traços significantes - sublimatório? De facto, o corpo como memória - “daimon” - espaço invisível, afectivo ou emotivo, aquém da linguagem, seriam categorias apropriadas para definir o fulcro prosódico de Antonieta Barros. Marca indizível ou inefável - , onde se concentra e exacerba, de maneira exemplar, o desdobramento multifacetado de um eu - o visível da demanda em direcção ao invisível do desejo - os sons e as sugestões visuais - a excepção feminina.


(inter)dependência

É necessário acrescentar que a feminilidade - o ser do feminino - recebeu - desde sempre - sua definição canônica na maternidade. Essa é, porém, uma parte da história, e não a mais importante. Até porque poderíamos avançar a hipótese da existência de uma mitologia social baseada na presunção de que o mundo exterior estava reservado ao homem, o interior à mulher- se bem que a noção da interdependência - em todas as actividades humanas - seja um dado padrão. Mas é essa "nuance" entre "tornar-se mulher" e "re-tornar-se mulher", a que Freud deu tanta ênfase, que é crucialmente importante. Seria errôneo, porém, diminuir a importância da história exemplar de Tirésias. Na tentativa, porém, de desvendar o gozo feminino - o segredo do seu sexo - coube-lhe ser anatomicamente metamorfoseado em mulher durante sete anos. Descobriu, em particular, que a mulher encontra no amor um prazer dez vezes maior que o homem.

Alexandre Teixeira Mendes


Porto, 26 de Janeiro de 2012


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