sábado, 27 de novembro de 2010

“EX-CRETA” DE VIRGÍLIO LIQUITO

O EVENEMENCIAL E O PATH-ÉTICO

Quais são as principais características textuais - a marca decisiva (difícil de identificar) – desta contra-narrativa ou narrativa da diferença - de Virgílio Liquito? Quem saberá destrinçar o que em “Ex-Creta” há de saída do labirinto, o que há de “instância” path-ética, neuropática e maníaca (admitindo a loucura ou, por definição, a sagrada esquizofrenia dos antigos gregos); o que há de recalque, trauma e clausura, de via do infra-humano e do atroz (sob os liames extremos da fantasmagoria excremencial)? Qual é o conteúdo básico do seu discurso (in)habitual? O que é interpelado ou representado? O que se configura neste jogo discursivo - misto ou híbrido - incessante - compulsivo - ordinário - transgressor - não-linear - engendrado entre a combinatória de situações limite e do cruzamentos complexo da língua e efeitos de sentido? A introdução do inadmissível num mundo somente admissível?

Sub-mundo, puzzle

O livro que ora analisamos - na sua mesmidade - discurso-outro - irrompe e afirma-se como ligação ao idioma des-construtor (deliberado ou não) ou à assinatura des-construtiva. Ainda aqui na constelação dos efeitos da repetição significante, do corpo-pulsão, que se torna psiquismo-representação. Aceitando a noção de “foraclusão” - definida por Freud - que designa, em primeiro lugar, a “expulsão da coisa”, expulsão que funda o sujeito e inaugura a sua produção discursiva. Lembremos a lógica dual destes textos - onde se re-afirma uma escrita nas cadeias de eros - entre as opções de gramática e de estilo - o real sócio-histórico e a veracidade testemunhal e a fidelidade autobiográfica. Implica, como tal, e pela temática envolvida, toda a re-actualização de um sub-mundo obscuro - (in)directo - aspectos e modalidades do dizer e do não-dizer - ou do implícito e do explícito - subterrâneo. Falámos acerca dum material inconsciente - não passível de interpretação e de recordação - que aparece então como “actuação-repetição” de um passado esquecido: “inusitado puzzle” (p. 31). É sob esse enfoque “sublimatório” que deve ser lido Virgílio Liquito.

Escrita-dejecto

Seria aliás difícil negar o sentido propriamente “ex-cêntrico” no qual esta escrita não cessou nunca de se desenvolver. Nada há aqui de fotografia “polaroid” do real. Poder-se-ia apreender a sua lógica enquanto “poética” da “ex-posição” - do singular - do “isso” - a parte obscura - impenetrável do humano (tomando a psicanálise). Falámos da con-figuração de uma escrita-dejecto, viscosa e idolátrica, fetichista, excre(de)mencial, (des)sacralizadora. E que, neste ponto, nos remete ao ateísmo da revolta e à blasfémia - um mundo de penumbras donde é necessário valorizar a sombra e apreciar os reflexos apagados. Mas tomando em conta que o centro desta “escritura” é praticamente determinado, segundo o nosso ponto de vista, pela sua inflexão libidinal, o pendor revelatório e transferencial. Outra hipótese mais complexa: a sobre-posição desordenada, a circularidade, o deslocamento, ou antes, a deriva narrativa. Porque o modelo prevalecente é o da linguagem exorbitante oriunda dos “Contos de Maldoror” de Lautréamont e de George Bataille.

Sujeito acéfalo, pulsão

“Ex-Creta”, de Vergílio Liquito, é um exemplo de um dizer náufrago - capaz de dar voz ao silenciado - a psicose - o (in)formulado - e onde se associa o real enquanto “impossível”. Mas há mais. É preciso ter em conta o caos pulsional - a dimensão delirante (mórbida) que deflagra nesta escrita - as premissas e os postulados de uma memória falaciosa - e certamente (in)capaz de reproduzir o passado - um processo (psico)patológico. Eis aqui um conjunto de textos na sua determinação “própria” de transgressividade narrativa - sintoma – quase sempre emersos no fluxo das recordações-puras, da rememoração, que condensa em si o sujeito acéfalo da pulsão. Não custa, porém, a perceber um universo discursivo marcado por instabilidades, no qual se fixa o fluxo dos distúrbios constatados e nada mais que estes distúrbios. Daí a sistémica do descomedimento, da expiação e da catarse (inseparável do autêntico trágico).

Fantasmas, simulacros

Alguns pontos do percurso do nosso autor são valiosos para mostrar a veemência de uma linguagem aparentemente aleatória e (im)previsível. Trata-se de uma escrita - que se furta aos rótulos (géneros padronizados) e, consequentemente, aos géneros do discurso (o “dejá vu”) - como contraparte ou (com)sequência : a) da ambivalência narrativa (emersa num discurso paranóico e psicótico); b) do sujeito desejante, sujeito do inconsciente, que permeia os (não) ditos do texto em questão; c) dos fantasmas (introjecção e incorporação); d) dos simulacros (levando em conta os materiais patogénicos). Há uma ordem ou desordem que actua. Daqui nos colocarmos em posição de “entender” a presença de não-ditos no interior do que é dito.

(De)composição, (dis)funcionamento

Seisgmundo Freud tinha já compreendido que a matéria corporal estava sempre sobre a suspeita de ser aviltante por conservar em si a memória da condenação ancestral que a carrega do opróbio da bestialidade. É claro que os textos de Virgílio Liquito não se contentam com enunciar o corpo fantasmático, o gozo, as feridas do simbólico mais que as feridas simbólicas. Ressalta uma particularidade interessante: a fixação sádico-anal, constatável na neurose obsessiva, os disfuncionamentos fisiológicos-orgânicos, gastro-intestinais, a proximidade ou “familiaridade” com a (de)composição. Reduz-se a ser uma escrita de aportações auto-biográficas - um compêndio de um complexo freudiano, onde se explora e potencia a morbidez patológica?

Traço-significante da miséria

Nos seus textos vislumbra-se, mesmo assim, tal como podemos reconstituí-lo, a interrogação angustiada do sentido da existência - o traço-significante da miséria a que chamamos a emergência da agressividade constitucional do humano - e o rastro do transbordamento pulsional (reconhecido como traumático) no regime fálico. O nosso autor não se contenta com enunciar a beleza de um sublime devaneio onírico e a brutalidade sem álibis no sofrimento psicótico. Prefere, antes, insistir na promulgação e glorificação arquétipa do sórdido? Uma nova categoria estética – o excrecionismo – surge, assim concebida, levando em conta a “atracção, mitológica, pelos sedimentos fecais” (p.8). Trata-se de uma poética tributária da “ruminação”, desse “visco” que Freud chamou “libido”. Assente numa velha e nova filologia – com referências ao putrefacto - captando territoralidades - produzindo e revelando sujeitos - personagens renegação (recalque) - fazendo emergir de si efeitos-sujeito - histórias bipolares.

Tessitura arcana, extenuação

No termo deste périplo é visível, porém, na escrita de Vergílio Liquito, a sua conexão com a experimentação no escuro, a “travessia do fantasma”, a secreta patologia. A questão posta também o que se refere directamente à alquimia ou “metagénese” - enquanto “signo-sintoma” e “signo arquétipo” – do “evento Universo Detritos” (p. 9). Porque tal é o dado primeiro: a repetição-diferenciação, o díspar, a extenuação reconduzindo aos “clichés” ou à auto-imitação. Como dar consinstência ao “pathos” genital do pensamento, um fundo delirante, híbrido, evenemencial ? Nessa retomada da vulnerabilidade “interna” do homem, a sua falta de coesão, a sua divisão ? Mas que pensar, entretanto, de uma escrita-síndrome, forjada em todo um engajamento “elementar” - simbolismo – tessitura arcana da matéria? No e pelo grassar do excrementício e do urinário, o que se fixa no prazer da retenção e da erecção, a conformação entre a passividade anal e a actividade fálica (seguindo as concepções dos freudianos e kleinianos)?

Clivagem, condição paradoxal

Parece-nos claro que a existência humana não é unicamente, nem precisamente, racional e volitiva, mas também patética; o nosso carácter não é só “ethos”, mas também “pathos”, nosso devir no ser e na existência não se limita ao domínio da razão, mas que se dá no acontecer mais além do controlo racional e nossos actos. O “pathos” é um elemento configurador do “ethos” até ao ponto de converter o humano existir em condição paradoxal. Relendo e confrontando estes textos - re-traçado de com(im)possibilidades - , acabamos por nos tornar testemunhas da mutação destruidora do desejo fálico em desejo de assassínio do objecto. Insistamos em que a frequência dos mecanismos de recusa e de clivagem, as ameaças que pesam sobre a identidade, o medo de se ser possuído por uma figura monstruosa, vêm aumentar essa suspeita.

Porto, 25 de Novembro de 2010

Alexandre Teixeira Mendes

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